Sobre Luca Rischbieter

Sócio-fundador da Casa Labirinto, geógrafo, com Mestrado em Educação pela Universidade de Paris V. Pesquisa a pedagogia dos labirintos lúdicos desde 2008. É palestrante e, desde 1995, consultor pedagógico da Positivo Informática.

A triste história de Hans, o cavalo

Wilhem von Osten e seu cavalo Hans, em Berlim, 1904

O psicólogo construtivista Paul Watzlawick, em seu livro How Real is Real? (Random House, Nova Iorque, 1976), nos conta a fascinante história de um cavalo chamado Hans, que vemos aqui ao lado de seu dono, Wilhem von Osten.

Em 1904, Hans deslumbrou a comunidade científica européia depois que. Von Osten, um professor de matemática aposentado, declarou que, graças à educação que recebera, Hans era capaz de responder corretamente a questões sobre aritmética, adivinhar a hora certa, reconhecer pessoas em fotografias, entre inúmeras outras proezas cognitivas.

Como Hans respondia às questões? Simplesmente batendo com os cascos no chão. Para que questões não-matemáticas pudessem ser respondidas, von Osten ensinou o alfabeto a Hans: à letra “a” correspondia um golpe de pata contra o solo, para o “b” Hans batia duas vezes e assim por diante.

Várias pesquisas científicas foram feitas com Hans, todas com o fim de descobrir alguma fraude (muitos achavam que Hans possuía algum código secreto com seu mestre). Mas, para surpresa geral, Hans continuava dando as respostas certas, mesmo quando os testes eram realizados sem a presença de von Osten.

Para a desgraça de von Osten, um assistente do professor, Oskar Pfungst, realizou as experiências que provaram que Hans não sabia ler, contar ou resolver problemas. No relatório que ele publicou junto com outro alemão de nome engraçado, Carl Stumpf, ele contou o que descobriu:

“O cavalo se enganava em suas respostas cada vez que a solução dos problemas apresentados era desconhecida das pessoas presentes. Quando, por exemplo, colocávamos diante do cavalo um número escrito ou os objetos a serem contados de tal forma que somente ele pudesse vê-los, ele fracassava na tentativa de responder corretamente.”

O que guiava Hans, ao bater com o casco no chão, eram as reações das pessoas presentes. Ele era capaz de perceber com extrema competência as reações corporais inconscientes das pessoas que assistiam aos testes. Observando essas reações, ele sabia quando parar de bater com o casco no chão.

Pfungst foi capaz de controlar em si mesmo essas reações inconscientes, de tal forma que conseguia desorientar totalmente o pobre Hans. Ele conta que, queria que a resposta certa fosse dada, bastava pensar nela com intensidade para que Hans pudesse de novo “ler” suas reações não-verbais e orientar-se por elas.

Se Hans pudesse falar, nos diria, mastigando as palavras com um terrível sotaque alemão, como ele fazia para acertar as respostas:

“Orra, é zimples, eu digo parra mim: muito bom, Hans, agorra comece a bater com os patas no chão até que essa xente fique satisfeita.”

O patético desfecho da história de Hans criou um grande trauma nos meios científicos. Na época, havia dezenas de casos não só de cavalos, mas também de cachorros e até de porcos que, aparentemente, respondiam às mais diversas questões através de batidas de patas ou de latidos.

Uma das seqüelas do caso de Hans foi que, nas experiências psicológicas com animais, passou-se a evitar qualquer contato entre ele e os cientistas. A incrível capacidade dos animais para decifrar as mais sutis reações dos outros passou a ser ignorada, o que não significa que eles tenham deixado de prestar atenção às pessoas que os examinam…

Nós, humanos e humanas, também somos extremamente sensíveis às reações dos outros. Todos nós, quando assumimos o papel de “alunos” e de “sujeitos de teste”, passamos a nos preocupar muito com as pessoas que assumem o papel complementar de “professor” ou “examinador”. Isso é normal, pois afinal são essas pessoas que têm a função de nos avaliar. Como Hans, nós tentamos perceber o que se espera de nós.

Essa tentativa de “adivinhar o que o outro quer” explica os resultados aparentemente absurdos obtidos em uma pesquisa realizada na França em 1980, com alunos(as) de 4a série. As crianças receberam, em sala de aula, um problema com o seguinte enunciado: “Em um navio há 26 carneiros e 10 cabras. Qual é a idade do capitão?” A grande maioria das crianças escreveu respostas como a seguinte: “26 + 10 = 36. A idade do capitão é 36 anos.”

As crianças deram respostas assim não porque eram “burras como cavalos”, mas sim porque, naquela situação específica, era isso que acharam que tinham que fazer. Elas pensaram algo que podemos descrever assim: “Não se deve, aqui, questionar a lógica do enunciado – o professor é que tem esse dever. Aqui, deve-se cumprir a obrigação de dar uma resposta.”

A partir desse raciocínio, as crianças francesas aplicaram um esquema já desenvolvido para resolver, na escola, esse tipo de problema. Podemos descrever esse esquema como uma seqüência de ações mais ou menos assim:

“Selecione, no enunciado do problema, os números; adicione-os; escreva na resposta o valor da soma. A professora ficará satisfeita com isso.”

Os alunos e alunas franceses sabiam muito bem que a pergunta não faria sentido “fora da escola”. Mas, dentro da escola, os processos de raciocínio e de bom senso não parecem se aplicar; na escola, faz-se, sem questionar, o que precisar ser feito para que o professor ou a professora fique feliz…

Tanto Hans quanto as crianças francesas estavam simplesmente fazendo o necessário para atingir um certo objetivo: agradar seus “examinadores”. Não existe nada de particularmente grave no seu comportamento, embora essas histórias sejam perturbadoras para quem se preocupa com pedagogia.

Por mais puras que sejam nossas intenções, como pedagogos preocupados apenas em educar, teremos sempre de lidar com o fato de que nossos alunos podem estar mais preocupados em nos agradar do que em realmente pensar sobre aquilo que gostaríamos que pensassem.

Em relação a cada conteúdo, vivemos de certa forma o mesmo drama do mestre zen que dizia a seu discípulo, com o braço erguido contra a noite clara: “Não olhe para meu dedo, mas para a Lua”…

A escola fechada e a escola aberta – o paradoxo de uma velha revolução que ainda não aconteceu na prática…

Nesse artigo vamos falar sobre uma velha briga da Pedagogia, que acontece entre os defensores de uma escola completamente isolada do mundo e os que defendem uma escola aberta para ele.

Vejamos alguns aspectos positivos de cada uma dessas visões:

Para os defensores de uma visão mais ortodoxa ou “fechada”, a escola é uma instituição que se tornou necessária a devido a fatores como a invenção da linguagem escrita, a difusão da democracia e o desenvolvimento de sociedades cada vez mais complexas.

Em um mundo que, a partir do final do século XVIII, foi ficando cada vez mais complicado, não é mais possível que a aprendizagem se faça como nas sociedades “primitivas”, em que as crianças aprendiam as habilidades importantes em contexto: participando com os adultos de atividades como plantar, tecer, caçar, etc. De acordo com a visão “fechada”, precisamos afastar a criança da sociedade, criar um espaço especial e protegido para que ela possa aprender o que é importante, longe do mundo caótico e confuso.

Assim, a separação e o isolamento são importantes porque criam um espaço em que podemos atuar para fazer coisas como dividir as crianças e adolescentes em diferentes faixas etárias, e fazer com que sejam submetidos a um programa didático e curricular específico.

Um dos mais brilhantes defensores de uma escola fechada ao mundo foi o pedagogo francês Alain (1868-1951). Para ele, a separação total entre escola e mundo é o fundamento dessa instituição, e ele resume sua posição em uma fórmula que ficou famosa: “A escola é e deve ser separada da natureza”.[i]

Um pedagogo contemporâneo reafirma a importância da separação entre escola e mundo, que cria um espaço em que existe o direito de errar: “O direito ao erro é precisamente o que justifica a escola em seu isolamento em relação à vida social”.[ii]

Em resumo, graças à escola temos tempo para perder tempo, para pensar e para errar, e essa parece ser uma vantagem inegável quando sabemos que o trabalho infantil ainda é uma realidade em muitos lugares e que a sociedade de consumo volta cada vez mais suas poderosas baterias para a infância e para a adolescência. A escola cria para a juventude um espaço livre das pressões sociais imediatas.

O que alguém pode ter contra essa visão?

Existem duas correntes principais de contestação da visão tradicional da escola isolada do mundo. A primeira, mais radical, contesta a própria necessidade de existência da instituição “escola”; a segunda corrente de críticas defende um uso totalmente diferente do espaço de liberdade criado pela instituição, que continua sendo necessária.

Para os autores mais radicais, entre os quais o mais conhecido é o austríaco Ivan Illich (1926-2002), deveríamos pensar em uma “sociedade sem escolas”. Em um livro polêmico e ainda muito interessante, publicado pela primeira vez em 1971, ele defendeu a ideia de que a escola possui um enorme poder – o monopólio de dizer quem “sabe” ou “não sabe” -, que esse poder deve ser contestado e que o processo de educação deveria passar pela criação de redes de conhecimento e pelo incentivo a todas as formas informais de aprendizagem.

Sua crítica, que faz parte de um pensamento que se opõem a qualquer espécie de grande instituição corporativa, é muito influente até hoje, especialmente nos EUA, onde muitas crianças de classe média estão sendo educadas por suas famílias, sem passar por escolas.

Na verdade as idéias de Illich podem ser interessantes até para aqueles que, como a grande maioria de nós, acreditam na importância fundamental da escola e sabem como é utópico esperar que uma sociedade – especialmente se for pobre e dominada pela mídia consumista como é nosso caso – tenha forças para gerar  em grande escala processos educacionais como aqueles com que sonhava Illich.

Um outro grupo de críticos, sem querer o fim das escolas, fala sobre o isolamento excessivo criado por muros que separam completamente a instituição do mundo em volta. Esses críticos, utopicamente, sonham com uma rede de escolas diferente, e não com uma sociedade sem escolas…

Vejamos algumas idéias importantes desse grupo:

As primeira grande crítica é dirigida à excessiva artificialidade da escola, que não hesita em criar métodos, divisões, escalas de avaliação, etc. Dessa forma, acaba criando um mundo artificial que fabrica suas próprias “hierarquias de excelência” (termo empregado pelo pesquisador suiço Philippe Perrenoud ao analisar o funcionamento da avaliação escolar), sem muita relação com o mundo real, mas que acaba tendo uma influência determinante, muitas vezes decisiva, sobre a construção da imagem tanto dos que conseguem chegar ao topo dessa hierarquia quanto dos que não cumprem bem seu papel de alunos bons e disciplinados.

Outra grande linha de críticas é quanto ao conteúdo escolhido e à maneira como é ensinado. O grande erro da escola mais tradicional está em seus conteúdos, que não interessam à juventude, e em seus métodos de ensino, que são autoritários e repressivos demais.

Aliás, essa não é uma crítica recente e já por volta de 1580, Montaigne, um dos pioneiros das concepções “abertas”, reclamava: ”não cessam de nos gritar aos ouvidos, como se por meio de um funil, o que nos querem ensinar, e o nosso trabalho consiste em repetir”.[iii]

Para muitos críticos, a grande solução para uma escola excessivamente artificial e isolada, distante dos interesses de crianças e adolescentes, seria uma abertura maior para o mundo. Assim, poderíamos selecionar assuntos de interesse muito maior, e poderíamos orientar um trabalho educativo com uma participação muito mais ativa de alunas e alunos. Mas, para isso, o papel das fronteiras, dos muros da escola, precisa ser repensado…

Outra grande crítica é quanto à natureza dos processos de comunicação que acontecem dentro dos muros da escola fechada. Devemos fazer perguntas como: Por que, quase o tempo todo, a proibição de que alunos conversem entre si? Por que só podem falar com o professor e somente com a sua autorização? É assim que se pretende formar pessoas aptas a debater e a participar ativamente de uma democracia?

Esse argumentos são sensatos, e receberam uma de sua expressões mais claras nas idéias do filósofo e pedagogo norte americano John Dewey (1859-1952). Para ele, as escolas deveriam funcionar como pequenas comunidades, valorizando a comunicação, a busca de objetivos comuns e a criação de processos em que todos aprendessem com todos.

Podemos perceber que uma das grande ideias do movimento que ficou conhecido como Escola Nova é valorizar muito mais as interações sociais do que o faz a escola tradicional: interações da escola com o mundo e interações entre todos os membros da comunidade escolar.

Dizer que esse debate não é importante para a pedagogia do século XXI, ou que está superado, é correr o risco de cair no ridículo. Ridículo, aliás, a que se expôs o movimento brasileiro conhecido como Pedagogia Histórico Crítica que, apesar de louváveis intenções de democratização do ensino, representou um retrocesso, ao reforçar posições e práticas didáticas da escola fechada.

Como se vê, a briga entre as concepções abertas e fechadas da escola é muito interessante, e continua nos dias de hoje.

Paradoxalmente os vencedores dessa briga, na prática, são os perdedores da discussão no plano teórico, e vice-versa. Enquanto que quase todos os grandes nomes da história da teoria pedagógica defendem posições abertas, na prática a imensa maioria das escolas, de todos os níveis e lugares, sempre funcionou  e ainda funciona a partir de um isolamento quase total do mundo.

Por isso, por mais que se possam criticar as posições “abertas” (como o fez de forma imprecisa e injusta a corrente brasileira conhecida como pedagogia histórico-crítica[iv]) é preciso reconhecer que, na prática, essas posições jamais  chegaram a influenciar de maneira significativa o funcionamento das redes escolares em qualquer lugar do planeta, nem mesmo na América do Norte ou na Europa. Na maioria dos casos, as iniciativas “abertas” se concentraram em escolas pioneiras, e não se expandiram a não ser de forma completamente desvirtuada.

Como diz de forma conclusiva Philippe Perrenoud, “o paradoxo é que denunciam-se os estragos de uma revolução pedagógica que jamais aconteceu ao nível dos fatos”.[v]

Na prática, a Escola Nova praticamente não foi descoberta, ainda, em pleno século XXI…

[i] Traduzido de: Alain. Propos sur l’éducation, Paris,  PUF, 3a ed., 1995. Página 40.

[ii] Traduzido de: Bernard Rey. Les Compétences transversales en question. Paris, ESF, 2ª edição, 1998. Página 137. Já existe uma versão brasileira desse livro, publicada pela Editora Artes Médicas.

[iii] Montaigne, “Ensaios”’. RJ, Ediouro, 1977. Página 144.

[iv] De forma “imprecisa” porque reduz a riqueza e diversidade de idéias e de experiências pedagógicas de toda uma corrente a um suposto “espontaneísmo”; “injusta” porque transforma em simples “interesses de classe burgueses” o trabalho pioneiro de pessoas importantes e, na maioria dos casos, profundamente engajadas com a melhoria das condições sociais e com a democracia.

[v] Traduzido de: Philippe Perrenoud. Métier d’élève et sens du travail scolaire. Paris, ESF, 2a ed., 1995. Página 17.

OS QUADRINHOS E A ESCOLA QUADRADA – A escola na visão das tirinhas de HQ

Em 2004, a revista Educação me pediu um artigo falando sobre a escola e as “tirinhas” de HQ. O resultado foi esse, com pouquíssimo texto, dividido em 8 itens, 23 tirinhas e uma visão extremamente crítica da escola “tradicional” – modelo que, para nosso espanto, predomina até hoje – por grandes artistas. 

Quando artistas fazem tirinhas sobre a escola, é importante ter em mente que quase  sempre estão falando da escola tradicional, aquela que a grande maioria deles – e de nós – conheceu. É dessa escola que tratam os quadrinhos selecionados aqui e é dessa escola que, como a maioria dos artistas, os cartunistas parecem não gostar nada, nadinha…

Os cartunistas nos falam através da voz de seus personagens e, misturadas com sua criatividade e com a personalidade única de cada personagem, certamente existem lembranças de suas experiências como alunos.

A seqüência das tirinhas fala por si, e o texto serve apenas como acompanhamento para uma amostra do grande talento de pessoas que se tornaram grandes artistas em seu campo. Restaria discutir – mas isso não vai ser feito aqui – se isso aconteceu apesar  da escola, contra ela ou, até mesmo, apesar de tudo, com a ajuda dela…

Vejamos o que as tirinhas nos dizem em sua linguagem brilhante e concisa:

1 – NÃO GOSTAMOS DA ESCOLA, ELA  NÃO É UM LUGAR LEGAL

 Artistas são em geral, desde a infância, pessoas com uma sensibilidade muito grande. Mais ainda que a média das crianças, eles parecem sofrer com a falta de espaço, dentro da escola, para desenvolver seus talentos pessoais  e com  o caráter massificador da educação tradicional. Seu desejo de expressão pessoal e de desenvolvimento da individualidade choca-se com a impessoalidade das regras e dos currículos. Muitos personagens detestam a escola e podemos ver alguns quadrinhos como um verdadeiro “acerto de contas” com uma escolaridade que foi vivida e aceita em silêncio.


2 – A ESCOLA É MUITO ARTIFICIAL E ISOLADA DO MUNDO

Especialmente entre os personagens da Mafalda, existe uma  percepção clara da grande distância, do verdadeiro “corte”, que existe entre escola e mundo. Essa separação cria um novo espaço, no qual surge um novo tipo de regras e um ensino que parece às crianças extremamente distante de seus interesses. O “jogo” da escola, o tipo de diálogo que ela propõe, chega a ser explicitamente rejeitado. Em suma, a escola não fala de coisas interessantes, nos obriga a tarefas sem atrativo e, mesmo quando nos saímos bem nela, não há motivo para festejar.

3 – A ESCOLA É UM LUGAR ONDE A GENTE “SE ENCHE” E QUE, POR ISSO, ESTIMULA O DEVANEIO

A escola nos isola de um mundo que normalmente é muito mais atraente. Ela nos obriga a ficar sentados, imóveis e quietos, seguindo discursos que na maioria dos casos não são interessantes. Isso estimula o devaneio e a fuga pela imaginação, onde aparecem temas e personagens que nos fascinam. Os artistas parecem recordar-se dessas situações mas, puxando pela memória, quem de nós não se lembra de ter passado por isso?

4 – APESAR DE TUDO, A ESCOLA É IMPORTANTE EM NOSSAS VIDAS, 

Como as crianças, os personagens das tirinhas ouvem os adultos falarem sobre como o que aprendem na escola “vai ser importante mais tarde”. Elas assimilam essa mensagem, mas buscam reagir a ela. Isso é especialmente verdadeiro no caso dos alunos mais rebeldes e/ou  “fracos”.

5 –  E TEM UM PAPEL IMPORTANTE NA CONSTRUÇÃO DE NOSSA AUTO IMAGEM

 A importância da escola em nossas vidas e para as outras pessoas  faz com que ela tenha influência sobre a formação de nosso auto-conceito. Infelizmente, essa influência se manifesta com particular intensidade, e de forma negativa, no caso das crianças que não se saem bem na escola, os alunos considerados mais fracos.

6 –  ÀS VEZES  DESEJARÍAMOS QUE A ESCOLA NÃO EXISTISSE,

Algumas vezes personagens expressam de forma clara um desejo que, em algum momento de nossa infância, muitos de nós sentimos:  preferiríamos que a escola fosse destruída, que deixasse de existir.  Sem a escola, acabariam-se coisas como fazer lições, submeter-se a uma disciplina excessiva e levantar cedo demais…

7 – OU ENTÃO, QUE FOSSE DIFERENTE

Existem situações em que os personagens parecem ir além de uma visão puramente crítica da escola e, dentro de um espírito rebelde e bem humorado, dão indicações de caminhos para uma escola diferente. Em geral, essas indicações sugerem mais diálogo e, principalmente, uma aproximação maior com a cultura infanto juvenil e com temas que a interessam.

8 –QUEREMOS UMA ESCOLA INTERESSANTE, QUE DEIXE BOAS LEMBRANÇAS

Concluindo, se não cabe aos cartunistas definir como deve ser uma escola menos quadrada e enquadradora, eles sempre podem nos inspirar, nos fazer rir e pensar. Aproximando-nos mais da sua e da nossa própria infância, eles podem nos animar a nunca desistir da busca de uma escola cada vez mais interessante, próxima das crianças, diferente daquela de onde muito de nós – inclusive o autor que aqui se despede, de forma autobiográfica (em uma fotografia de 1966) – tínhamos mesmo era vontade de fugir…

O FIM!

 

Jerome Bruner, o último gigante da psicologia

A educação não é uma ilha, mas parte do continente da cultura.[1]

Em 05 de junho de 2016 faleceu o último dos grandes nomes do “quarteto fantástico” (ao lado de Wallon, Piaget e Vigotski) da psicologia da aprendizagem, Jerome Seymour Bruner, norte americano nascido em Nova Iorque em 15 de outubro de 1915.

Não é nada simples resumir uma trajetória secular, marcada pela abertura à cultura e ao diálogo com todos os campos do conhecimento, que deixou sua marca em praticamente todas as etapas e debates importantes da psicologia. É o que tentarei fazer aqui, ousando dividir a vastíssima obra de Bruner – apresentada em uma série de livros compostos por ensaios brilhantes – em quatro etapas, ou campos, principais:

1) Revolução cognitiva.

O início da trajetória de Bruner tem no ano de 1956 um marco fundamental, quando ele co-edita A Study of Thinking[2], uma das obras precursoras da revolução cognitiva. As pesquisas e análises do livro buscam as raízes do pensamento conceitual, estudado em situações de laboratório, e foram uma reação ao comportamentalismo vigente à época.  Em um novo prefácio, de 1986, Bruner lembra que a insurreição original buscava nos livrar das correntes do behaviorismo anti-mentalista e recapturar a ideia funcionalista da mente operando não cegamente, mas com intencionalidade; mas observa que, com o avanço das ciências cognitivas, no lugar das correntes behavioristas, encontramos instalada uma nova espécie de corrente: a computacional[3], que ele julgava igualmente perigosa, por negar a intencionalidade, a colaboração, a experiência e a construção ativa de significado. Logo, Bruner passaria a outras linhas de pesquisa, e o desenvolvimento de sua psicologia cultural o levaria, cada vez mais, à pesquisa de aspectos da mente humana que podemos chamar de não racionais, envolvendo afetividade, interação e construção de narrativas.

2) Psicologia da aprendizagem escolar e reflexão sobre escola

​Para muitos de nós, no Brasil, o contato inicial com Bruner aconteceu através de dois livros voltados para a Pedagogia: O Processo de Educação e Por uma Nova Teoria da Aprendizagem[4].  Nestas obras encontramos um verdadeiro “norte” para pensar materiais e atividades didáticas, com destaque para a ideia do “currículo em espiral”, que é claramente expressada por Bruner: Partimos da hipótese de que qualquer assunto pode ser ensinado com eficiência, de alguma forma intelectualmente honesta, a qualquer criança, em qualquer idade.[5] Um grande desafio, que colocava em cheque o conceito de “maturidade”, de períodos antes dos quais seria inútil tentar ensinar.

Apesar de serem as obras de Bruner mais conhecidas entre nós, há nestes livros uma aceitação implícita da função da escola como um espaço de ensino. O próprio Bruner sabia disso e, no resto de sua obra, encontramos uma visão de escola que é muito mais rica. Para nós, da Pedagogia, Bruner é decisivo, também, pela visão potencial de escolas como espaços culturais ricos e instigadores, em que crianças e jovens se apropriam ativamente dos recursos e das oportunidades oferecidos pela cultura mais ampla, construindo sua identidade pessoal e coletiva, inventado as suas próprias narrativas. Uma visão semelhante à de Dewey, apresentada de forma muito mais sofisticada e rigorosa.

3) Pesquisas com bebês e aprendizagem da língua materna.

Principalmente na década de 70, Bruner se envolve em uma série de pesquisas sobre as competências dos bebês. Um tema percorre o conjunto das pesquisas: as relações entre o desenvolvimento mental e a capacidade de construir comportamentos intencionais.[6] Bruner torna-se o mais importante pioneiro a falar sobre a riqueza das interações entre bebês e suas mães, sobre a capacidade de ação em conjunto, sobre como é impossível conceber o desenvolvimento humano isolando o bebê do meio em que ele cresce. Essas pesquisas logo se estenderiam à aprendizagem da linguagem, que Bruner também irá revolucionar, ao mostrar como ela surge inserida em uma rede incrivelmente complexa de interações sociais, em que mães e bebês constroem uma série de pequenos rituais com distribuição de papéis. Um de seus exemplos favoritos eram os jogos de esconder-achar, em que o bebê vai tornando-se progressivamente mais ativo. Para ele, a linguagem é adquirida como instrumento de regulação da atividade em conjunto e da atenção dividida. Indiscutivelmente, sua estrutura reflete essas funções e sua aquisição é impregnada dela.[7] Ao levar em conta a imensa riqueza desse universo de interações, Bruner faz uma crítica definitiva às visões ineístas sobre como aprendemos a falar.

4) As narrativas como pilar da psicologia cultural

As últimas décadas de atividade são devotadas à reflexão sobre uma psicologia radicalmente cultural que, sem negar os avanços do conhecimento biológico, parte do princípio de que sem as ferramentas da cultura, o homem não é um “macaco nu”, mas uma abstração vazia.[8] Bruner – que em 1962 já afirmava que a arte é a forma mais avançada de comunicação[9]dedica-se cada vez mais ao que há de não lógico, de metafórico na atividade humana e, estudando textos tão diversos como os jogos de crianças, autobiografias ou decisões jurídicas, defende a importância das narrativas na construção de nossas identidades. Vivemos em um mar de histórias, e como os peixes (segundo o provérbio) serão os últimos a descobrir a água, temos nossas próprias dificuldades para entender como é navegar em histórias.[10]

Consagrado há décadas como um grande nome da revolução cognitiva, Jerome Bruner nunca deixou de ser pioneiro na definição e abertura de novas frentes de pesquisa. Um legado vasto e belo, ao qual devemos retornar, sempre.

NOTAS:

[1] Bruner, J. The Culture of Education. Cambridge: Harvard, 1996, p.11.

[2]Bruner,j; Goodnow, J e Austin, G.A.(Eds)  A Study of Thinking. New Brusnwick:  Transaction Pub., 1956.

[3] Idem, p. XV.

[4] As primeiras edições em inglês são de 1960 e 1966..

[5] O Processo de Educação, 8ª Ed. 1987, p.31.

[6] Bruner, J. Savoir-Faire, Savoir-Dire. Paris, PUF, 1983, p.16.

[7] Idem, p.210.

[8] The Culture of Education,  p.3.

[9] On Knowing:essays for the left hand.  Cambridge: Harvard UP, 1962, p.73.

[10] The Culture of Education , p.147.

Bons tempos em que chamávamos as professoras de “tias”?!?

Dizem que uma da maneiras de chamar a atenção dos outros é apresentando pontos de vista polêmicos, e é isso que estamos fazendo aqui, ao propor a discussão de uma ideia que pode parecer chocante para alguns, inclusive para o próprio autor desse artigo:

1 – Não há nada de tão grave assim em que as crianças chamem suas professoras de “tias”.

Essa ideia, que pode arrepiar os cabelos de mais de um(a) pedagogo(a), se justifica pela percepção de um problema muito maior:

2 – Infinitamente mais grave é quando crianças e adolescentes não desenvolvem nenhuma espécie de familiaridade com seus professores e suas professoras.

Essa é a questão que gostaríamos de discutir nesse artigo, e que nos leva a uma posição polêmica pois, afinal de contas, houve um verdadeiro combate contra o velho hábito de dizer “tia”, e esse movimento tinha, e continua tendo, sua razão de ser: é uma luta contra uma visão excessivamente amadora da profissão de professora.

Paulo Freire, em um livro chamado “Professora sim, tia não”, expõe de forma clara as principais razões para as professoras deixarem de ser tias: essa visão de uma classe profissional como sendo constituída de parentes das crianças cria expectativas de que não é preciso uma boa qualificação para fazer o trabalho de ensinar, além de uma visão política passiva e alienada, já que identificar “professoras” com “tias”  é quase como proclamar que ‘professoras’, como boas ‘tias’ não devem brigar, não devem rebelar-se, não devem fazer greve.[1]

Essa ideia foi encampada por boa parte das escolas do país e, em muitas delas, criou-se o hábito de chamar as professoras pelo seu nome. Aliás, um bom hábito que, em boas escolas, favorece a criação de relacionamentos pessoais de boa qualidade entre alunos(as) e professores(as). Talvez até melhor do que o costume tradicional de sempre preceder os nomes por um “tia” ou “tio”.

Mas, francamente, será que essa diferença é decisiva? Conhecendo pessoalmente muitas escolas públicas e privadas em que ainda há o hábito de dizer “tia”, não acho que essa seja uma diferença decisiva na determinação da qualidade do ensino de uma escola. Se em vez de Lúcia ou Maria, as crianças chamarem suas professoras de Tia Lúcia, Tia Maria, esse detalhe não pode de forma alguma ser considerado decisivo para definir diferenças entre duas escolas. Podemos ter boas escolas em que as crianças chamam as professoras de tias e péssimas escolas em que há o hábito de chamá-las por seus nomes.

Mais grave seria a situação em que, com ou sem o “tia”, as crianças mal soubessem os nomes dessas pessoas que tornam-se tão importantes em suas vidas.

E, pensando bem, não seria exatamente esse um dos grandes dramas da educação, especialmente do 6º ano em diante?

O grande risco para a educação não é o das escolas tornarem-se como famílias, povoadas de “tias”, mas que aconteça o oposto: que elas sejam lugares em que as crianças mal conhecem os adultos, não tenham familiaridade com eles e não se sintam “em casa”.

Para o educador francês Raymond Fonvieille (1923 – 2000), um discípulo dissidente de Freinet, a principal causa da violência e do fracasso escolar era a falta de relacionamento informal entre professores e alunos nas grandes escolas, onde há professores demais e relacionamentos pessoais de menos. Para ele, e não vejo como podemos discordar:

É nessa dispersão, que engendra a irresponsabilidade, o anonimato e a indiferença, que reside o fracasso do colégio atual. Um garoto de dez ou onze anos, bem como os alunos em situação de fracasso escolar que eu atendia, antes de ter necessidade de conhecer a anatomia da rã, tem necessidade de segurança.[2]

Aí está uma ideia simples e sensata: crianças e adolescentes que sentem-se seguros irão se concentrar, pensar e aprender melhor. A insegurança e a ansiedade são as grandes inimigas da inteligência, da curiosidade, da atividade organizada e da aprendizagem,. Qualquer professora de Educação Infantil sabe disso, e é por isso que existe nesse nível de educação uma grande preocupação com a adaptação de cada criança, um processo complexo para procurar fazer com que cada uma “se sinta em casa”, em um tipo novo e diferente de lar.

Deborah Meier, educadora e diretora de uma rede de pequenas escolas que, nos anos 1970 e 1980, alcançou resultados educativos excelentes em um bairro carente de Nova Iorque, acredita que esse caráter “familiar” da Educação Infantil não deve jamais ser esquecido e que até mesmo ao concebermos no trabalho com adolescentes, é necessário manter vivas as idéias e o espírito da boa educação infantil.[3]

Mas o que caracteriza o espírito da Educação Infantil? Para ela, os princípios mais importantes são a proximidade entre adultos e crianças, a abertura de espaço para o desenvolvimento de laços entre as crianças e o uso intenso da imaginação criativa e do jogo. Ele diz que, ao pensarmos a educação de adolescentes, os mesmos princípios deveriam ser aplicados, e é isso que ela fez em suas escolas no Harlem, em Nova Iorque.

Para os dois educadores citados nos parágrafos acima, fenômenos como a criação de gangues de adolescentes estão se acentuando porque não estamos oferecendo aos jovens a possibilidade de contatos ricos com adultos que possam servir como modelos e parceiros de diálogo, em ambientes onde haja espaço para a expressão criativa e para a formação de laços de amizade saudáveis.

A posição de Deborah Meier é clara: embasada em sua experiência, ela afirma que, ao contrário do que se possa pensar, os adolescentes não tendem “naturalmente” a isolar-se em grupos  fechados e agressivos. Pelo contrário, afirma, ao falar sobre as virtudes das escolas pequenas, em que todos se conhecem:

As evidências sugerem que a maioria dos jovens possuem uma fome tão profunda pelas relações que essas escolas oferecem a eles – entre crianças e entre adultos e crianças – que eles escolhem a escola em vez das culturas alternativas na Net, na televisão e nas ruas.(…) Percebemos que a fome por conexões com os adultos é forte o suficiente para fazer uma diferença, se dermos a ela uma chance.[4]

Portanto, fenômenos como as gangues só acontecem quando não conseguimos inserir os adolescentes em nenhuma rede de relações ricas em que adultos participam.

A solução para Meiers é clara e passa pela criação de escolas pequenas. Aliás, ao assumir a direção de uma enorme escola pública americana, seu primeiro passo foi dividi-la em várias escolas pequenas pois o que as grandes escolas fazem é recordar à maioria de nós que não temos muita importância.[5]

É claro que ela está falando de enormes escolas públicas em regiões carentes, mas seu alerta é válido para todos nós, em qualquer tipo de escola: um dos maiores riscos que a educação de massa corre é o de criar escolas em que há um isolamento quase total entre crianças e adolescentes, de um lado, e adultos de outro. Nessas escolas, a falta de relacionamento empobrece todo o ambiente, e acaba afetando inclusive as aprendizagens.

Para concluir, eu ousaria afirmar que, em escolas em que as crianças e adolescentes sentem-se “em casa”, os resultados educativos serão excelentes – e os riscos de violência menores – , independentemente dos métodos pedagógicos e que, nesses casos, tanto faz os(as) alunos(as) chamarem ou não as professoras de “tias”, os professores de “tios”. Eu prefiro quando não chamam, se bem que, até hoje, eu chamo a maior e mais completa educadora que conheci, a maravilhosa Vera Miraglia, de “Tia” Vera…[6]

Notas:

[1] Paulo Freire, “Professora sim, tia não”. São Paulo, ed. Olho d’água. 4a edição, 1994. Página 12.

[2] Traduzido de: Raymond Fonvieille, “Face à la violence: participation et creativité”. Paris, P.U.F., 1999. Página 11.

[3] Traduzido de: Deborah Meier, “The power of their ideas”. Boston, Beacon Press, 1995. Página 30.

[4] Traduzido de: Deborah Meiers, “Will standards save public education?”. Boston, Beacon Press, 2000. Página 23.

[5] Deborah Meiers, “The power of their ideas”. Página 30.

[6] Esse artigo foi dedicado à “Tia” Vera Miraglia, na passagem dos 40 anos do Colégio Anjo da Guarda, de Curitiba, ou seja, a versão original deste artigo, revisado para ser  postado no “Blog do Luca” em março de 2019, já tem duas décadas…