A1 – Devemos deixar as crianças brincarem de guerra?

A HISTÓRIA DO PEQUENO REINO – Texto complementar 1

 DEVEMOS DEIXAR AS CRIANÇAS BRINCAREM DE GUERRA?

Neste texto procuro abordar um pouco mais detalhadamente a questão dos jogos de faz de conta com armas de brinquedo e com violência de mentirinha. (Dentro da proposta apresentada no livro A História do Pequeno Reino e no site www.lucapr.com, o artigo é sugerido como leitura complementar à discussão 2).

Debater essa questão é muito importante em um mundo em que, por exemplo, a cada novo conflito que explode, em qualquer lugar do planeta, os meios de comunicação nos mostram imagens terríveis, que acabam sendo vistas por nossas crianças.

Elas se impressionam e percebem o interesse dos adultos por essas imagens e por esses temas. Como querer que elas não brinquem de guerra? Aliás, será que devemos tentar impedi-las de brincar de guerra? Eu acho que não…

A discussão desse tema é motivada pela constatação de que, atualmente, muitas escolas de Educação Infantil estão tentando coibir todas as brincadeiras em que as crianças dramatizam cenas violentas e proibindo que elas tenham brinquedos como revólveres ou espadas de plástico.

Por mais que eu perceba as boas intenções que estão por trás dessa proibição, gostaria, neste artigo, de discordar totalmente dessa posição. Crianças pequenas, meninos e meninas, precisam de brincadeiras agressivas.

Vejamos um exemplo radical disso: nos dias seguintes ao terrível atentado de 11 de setembro de 2001, crianças do mundo inteiro fizeram brincadeiras muito mais violentas do que de costume, envolvendo explosões, pessoas mortas, etc. Isso é um fato e não significa que essas crianças estivessem tornando-se mais violentas porque brincavam de reproduzir as imagens traumatizantes que a TV mostrava incessantemente. Na verdade, o fato de brincar é que permitia que as imagens perdessem um pouco de seu impacto. Proibir as crianças de dramatizarem esses eventos terríveis seria uma maneira de dificultar muito mais a assimilação deles. O melhor, segundo os(as) psicólogos(as), era deixar que elas brincassem, conversar com elas e mostrar compreensão. Com o tempo, esses jogos deixaram de ser importantes e as crianças voltaram a brincadeiras mais diversificadas.

Houve um tempo em que ninguém se preocupava se as crianças brincavam de guerra ou de bangue-bangue. Eu mesmo, lá pelos 7 anos de idade, ganhei uma incrível metralhadora de  plástico de presente de  minha avó,  e essa  foi apenas uma  de um sem-fim de armas de brinquedo de todos os tipos que povoaram a minha infância e a das crianças de minha geração. Nossas mães jamais tentaram proibir essas brincadeiras e, no recreio da escola, as professoras também não.

Mas o mundo mudou, e o medo da violência fez surgir um movimento contra as armas de brinquedo e até contra as brincadeiras em que crianças dramatizam cenas violentas. A vida da classe média brasileira era mais tranqüila em outras épocas, e quase ninguém imaginava que brincar de bandido e mocinho pudesse estimular a formação de pessoas agressivas. E não pode mesmo.

Aliás, muito pelo contrário: o que se tem constatado nas pesquisas com pessoas muito violentas — dessas que agridem a esmo ou pegam uma arma e atiram nos colegas — é que a infância delas foi solitária e/ou traumática e que elas não brincavam muito de mocinho e bandido… Segundo Gerard Jones, um autor norte-americano que há anos vem estudando a violência nas brincadeiras, pesquisas mostraram que, quando eram crianças,

(Os) adolescentes violentos muitas vezes tinham dificuldades para formar parcerias com outras crianças em jogos infantis.[i]

Para quem estuda Psicologia não há nada de surpreendente nessa descoberta, e o jogo é visto há décadas como um excelente remédio para a criança que está com raiva, frustrada ou traumatizada. Não há nada de errado com o fato de, muitas vezes, os modelos oferecidos por desenhos animados e seriados da televisão acabarem   tornando-se veículos para brincadeiras em que a criança joga com sua própria agressividade.

Brincar com a própria agressividade. Isso é fundamental para a criança. É brincando que ela aprende que sua agressividade não afeta a realidade, que desejar a morte de alguém, por exemplo, não significa que esse alguém vai morrer. Nos jogos, pode-se morrer e, mais importante, ressuscitar à vontade.

Quando as crianças podem brincar com suas fantasias agressivas, em pouco tempo desenvolvem plena consciência da diferença entre a violência de brincadeira, dramatizada em seus jogos, e a violência de verdade.

Quando o adulto que não quer essas brincadeiras coíbe a dramatização agressiva, na verdade, está passando uma mensagem terrível para as crianças: “Eu, que deveria estar no controle, não sei como controlar sua agressividade. Tenho medo de que essa violência de brincadeira acabe virando violência de verdade”. Em vez de brincar com a agressividade e aprender a ineficácia dela, as crianças aprendem que os adultos parecem temê-la. O pior que pode acontecer é que elas próprias passem a ter medo de sua agressividade. Isso é grave e é algo que uma escola de Educação Infantil pode acabar ensinando sem querer, mesmo com a melhor das intenções…

É preciso preocupar-se não com a criança que participa de brincadeiras em que são encenados tiroteios e brigas, mas sim com aquela que nunca participa delas. Por quê?

A resposta é simples: porque a agressividade, em vez de ser dramatizada e expressa no jogo, pode estar sendo reprimida. Por trás de uma criança tímida demais, que não brinca, pode estar acontecendo um acúmulo de agressividade que vai explodir muitos anos depois, sob a forma de agressão aos outros ou a si mesma.

Quando uma escola de Educação Infantil tenta proibir jogos de violência ou com armas, certamente ela encontra muitas dificuldades. Por exemplo: quando vão brincar de Lego, a primeira coisa que muitos meninos fazem com as pecinhas são “revólveres”. A agressividade proibida nos jogos vai aparecer nos desenhos ou, o que é muito pior, de forma não simbólica, resultando em problemas de verdade.

É difícil reprimir todos os jogos de faz-de-conta violentos e, como estamos vendo, não é aconselhável tentar fazer isso. Gerard Jones, que foi citado há pouco, resume os trabalhos de uma colega inglesa:

As pesquisas recentes de Penny Holland em pré-escolas britânicas descobriram que, quando se permitia que as crianças brincassem com armas de brinquedo, os jogos se tornavam mais ‘agressivos’ no curto prazo, mas a atmosfera na sala estava notavelmente mais relaxada mais tarde no mesmo dia.[ii]

As pesquisas parecem confirmar uma idéia antiga: crianças que podem vivenciar a violência de faz-de-conta fazem uma verdadeira catarse de algumas de suas experiências emocionais mais fortes.

Pode parecer paradoxal, mas, se queremos crianças menos violentas e mais relaxadas, devemos deixar que elas descarreguem as frustrações e a agressividade em jogos de faz-de-conta. Tentando proibir os jogos violentos, estamos dificultando as coisas para nós mesmos e, o que é mais grave, para as crianças.

É lógico que tudo tem limites, e o bom senso de nossos educadores e educadoras deve dizer em que momento as brincadeiras agressivas podem estar tornando-se presentes demais e tomando muito tempo na rotina das crianças. Mas, na maioria dos casos, as coisas não acontecem assim, e as crianças não mostram o menor desejo de brincar somente com situações de violência.

As recomendações dos psicólogos a respeito de um bom desenvolvimento infantil têm implicações pedagógicas muito claras: ao mesmo tempo em que devemos definir limites e coibir a violência física real entre as crianças, podemos permitir e até criar meios para facilitar a expressão simbólica da violência. Ou seja, não precisamos incentivar as dramatizações de violência, mas também não é necessário preocupar-se muito em reprimir essas brincadeiras.

Para concluir, podemos dizer que existe um método simples para saber se é necessário coibir a atividade violenta das crianças. Basta, quando elas estiverem brigando, nos perguntarmos se estão brigando de verdade ou se é de brincadeira. Se for real, devemos interromper; do contrário, isso não é necessário. Por incrível que possa parecer, a melhor coisa que um adulto pode fazer, quando uma criança atira nele com um revólver de brinquedo, é entrar na brincadeira, colocar as mãos no peito e morrer de mentirinha…

 

Esse artigo faz parte da proposta pedagógica “A História do Pequeno Reino”, de Luca Rischbieter, que pode ser acessada no endereço: www.lucapr.com.br


Notas:

[i] Traduzido de: JONES, Gerard. Killing monsters: why children need fantasy, super heroes, and make believe violence. Nova York: Basic Books, 2002. p. 37.

[ii] Idem, p. 40.

 

 

 

A2 – Perigo: coelho pronto para colorir!

A HISTÓRIA DO PEQUENO REINO – Texto complementar 2

PERIGO: COELHO PRONTO PARA COLORIR!

Este artigo, sugerido também como leitura complementar à DISCUSSÃO 4, fala de ideias fundamentais para quem reflete sobre Educação Artística. Esse debate é feito a partir de um exemplo e de um alerta, que podem ser resumidos assim:

Atenção, educadoras e educadores: a cada ano, a aproximação da Páscoa traz consigo uma grande ameaça: um bando de coelhos prontos para colorir. Pior ainda: como todos os coelhos, esses também tendem a reproduzir-se numa velocidade espantosa. Antigamente isso acontecia com a ajuda de mimeógrafos; de uns tempos para cá, até das novas tecnologias… O perigo só aumentou, cuidado…

Agradecimento: O título do artigo é de autoria do sempre perspicaz Parau Branco, que captou a ideia. 🙂 

Ah, os desenhos prontos para colorir… Não há como escapar deles. Em jardins de infância, creches, nas escolas, nas livrarias, nos lares, em softwares, nas telas dos computadores, nos tablets e i-pads…

Você já pode estar se perguntando: “Mas o que é que esse sujeito tem contra os desenhos prontos para colorir? Eles não são bacanas? Qual é o problema?”.

Conheço pessoas que já me perguntaram isso, algumas delas até são artistas hoje, e me dizem que gostavam de desenhos prontos para colorir. Apesar de meu espanto com isso, e de uma aversão intuitiva às atividades de colorir desenhos prontos, preciso tentar me explicar de forma que até mesmo essas pessoas possam perceber o argumento. Espero conseguir isso nos próximos parágrafos. Vamos lá:

 Um grande arte educador e seu inimigo número 1:

 Quando, no final dos anos 1980, comecei a trabalhar com redes de creches públicas, especialmente em Curitiba e em cidades de sua região metropolitana, comecei também a pesquisar a literatura sobre educação e arte infantil. Entre as referências obrigatórias, encontrei um livro encantador, chamado A criança e sua arte, de um educador austríaco radicado nos EUA, Viktor Lowenfeld (1903–1960).

Logo no começo de seu livro, dirigido a pais de crianças e lançado em 1954, podemos perceber que Lowenfeld tem um verdadeiro pavor dos cadernos com desenhos prontos para colorir. Eles são seu grande inimigo, ao longo do livro. Por quê? Vamos acompanhar seu raciocínio, quando ele usa como exemplo outro grupo de animais perigosos, que são os cachorrinhos prontos para colorir.

Para começar, eu gostaria que você, por favor, pensasse em um grupo de cinco crianças: imagine que uma delas tem um cão grande; outra um pequeno cachorrinho; outra foi mordida por um cachorro na rua; outra acaba de perder seu cãozinho em um acidente; outra deseja muito ter um cão, mas seus pais se negam a atender seus pedidos. Pensou?

Segundo Lowenfeld, e não vejo como alguém possa discordar dele, cada uma dessas crianças tem experiências diferentes com cães. Se pedíssemos para que desenhassem cachorros, ou para fazer dramatizações em que imitam um cão, é muito provável que cada uma delas fizesse algo diferente.

Mas quando entregamos desenhos de cachorros para serem coloridos, toda essa riqueza experiencial deixa de encontrar espaço. Vamos acompanhar o argumento de Lowenfeld:

 Suponhamos que a primeira figura que a criança deve preencher com tinta seja a de um cão. Dessa forma, a criança, obrigada a seguir determinado contorno, acha-se impedida, por nós, de resolver criativamente suas próprias conexões.[i]

Não há espaço para a experiência e para a expressão própria de cada criança, em uma situação dessas. Prosseguindo com o argumento, Lowenfeld fala sobre o que acontece com crianças a quem oferecemos atividades de colorir desenhos de cães:

Suas relações com um cão podem ser de carinho, amizade, antipatia ou medo. E não lhe oferecemos a oportunidade de expressar essas ligações, o que aliviaria seus ímpetos de alegria, ódio ou temor. Nos cadernos de figuras para colorir não há lugar para expressar as próprias ansiedades (…). Nem sequer há lugar para as diferenças individuais que possam existir entre Maria e Virginia. Ao preencher os contornos, vemos que estão todos arregimentados num mesmo tipo de atividade, sem que existam meios de satisfazer as diferenças individuais.

Lowenfeld tinha uma grande paixão pelo desenho como atividade saudável para crianças, capaz de ajudá-la até mesmo a conhecer e a expressar seus sentimentos, e a trabalhar suas ansiedades e frustrações. Daí seu imenso desgosto com tudo que se perde quando pedimos a todas as crianças para colorir desenhos infantilizados. Mas isso é mesmo muito grave?

Joãozinho, naturalmente, desconhecendo todas essas implicações, e um tanto preguiçoso por natureza, diverte-se colorindo o cão; mas, ao mesmo tempo que o faz com seu creiom, ele sente que jamais poderá desenhar outro cão tão bonito quanto este. É possível que fique bastante orgulhoso, quando houver terminado seu trabalho, pois, na verdade, coloriu o animal.

 A conclusão, e o resultado (des)educativo disso é inevitável, segundo ele:

A próxima vez, na escola ou em outro lugar, que for convidado para desenhar alguma coisa, ele se lembrará do cachorro, no caderno para colorir. Compreendendo que não pode competir com aqueles desenhos, responderá com muita lógica: “Eu não posso desenhar”.

Há um certo tom exagerado no argumento, é verdade, mas me parece que isso é produto muito mais da impotência que Lowenfeld sentia diante do sucesso avassalador dos desenhos prontos para colorir, e do público a quem ele dirige o seu texto. Mesmo hoje, nenhum educador, e nenhum pai ou mãe, deveria ficar indiferente ao ler a conclusão desse grande professor e pesquisador da arte infantil:

 Uma criança, depois de condicionada à coloração de figuras, terá dificuldades em desfrutar da independência de criar. A sujeição que esses cadernos produzem é arrasadora. A experimentação e a pesquisa têm provado que mais da metade das crianças, expostas aos cadernos de colorir, perdeu sua criatividade e sua autonomia de expressão. Tornaram-se rígidas e dependentes.

Logo depois dessa argumentação, Lowenfeld apresenta um exemplo em três imagens, que ele empresta de um trabalho de pesquisa publicado por dois colegas seus. Em primeiro lugar, ele mostra o desenho de um pássaro, feito por uma criança, antes de lidar com desenhos prontos para colorir:[ii]

Em seguida, Lowenfeld nos mostra um exemplo típico de uma atividade como as que encontramos até hoje, lamentavelmente, em materiais didáticos voltados para o ensino da Matemática nos primeiros anos da escolaridade. Nesse exemplo, a criança era instada a copiar os pássaros e a colori-los com uma cor específica:

 A terceira imagem mostra a mesma criança desenhando pássaros, depois de realizar a atividade “matemática” (como se isso fosse matemática, não é, mas esse não é o espaço para enveredar por essa discussão). Vejamos o novo desenho da criança que desenhou aquele lindo pássaro:

E veja como Lowenfeld descreve essa terceira imagem:

 A criança que perdeu sua sensibilidade, após copiar cadernos para colorir.[iii]

Em outro livro, em que faz uma abordagem mais rigorosa sobre a criatividade infantil, Lowenfeld mostra a mesma sequência de três imagens e comenta, desolado:

Em algumas experiências conduzidas por Russel e Waugamam (1952), 63% das crianças que tinham trabalhado com livros de pássaros para colorir haviam perdido seu conceito original de pássaro e mudado seus desenhos, de modo a torná-los semelhantes ao estereótipo do compêndio. (…) Depois de colorir os pássaros do livro, a criança perdeu sua sensibilidade criadora e sua autoconfiança.[iv]

Mesmo que você seja apaixonado ou apaixonada por desenhos prontos para colorir, há de concordar comigo que a argumentação de Lowenfeld devia nos deixar “com a pulga atrás da orelha”.

Eu, na época, fiquei muito impressionado com o argumento e fui a campo preparado para o combate…

A magia de desenhar coelhos, em vez de só colori-los

Já nos primeiros meses de 1991, junto com colegas que atuavam no Projeto Araucária, da Universidade Federal do Paraná, fomos a uma reunião com coordenadoras de creches de uma das regiões administrativas de Curitiba.  A Páscoa se aproximava, e queríamos discutir sugestões para trabalhar com as crianças de nossas creches. Quando perguntei sobre atividades que elas planejavam desenvolver, todas as coordenadoras pedagógicas disseram que, sim, planejavam mimeografar e distribuir os famigerados coelhos prontos para colorir!

Depois de muita conversa, consegui fazer um trato, e algumas coordenadoras concordaram com nossa proposta:

Em vez de impor desenhos de coelhos prontos para colorir, sugerir que as crianças que quiserem desenhem o Coelho da Páscoa”.

Logo após a Páscoa de 1991, nos encontramos de novo. E o que eu vi me convenceu de vez de que desenhos prontos para colorir deveriam ser vistos como inimigos da Educação Infantil. Muitas pessoas queriam contar histórias, havia uma empolgação no ar e, todas estavam surpresas com a vontade de desenhar das crianças. Nunca me esqueci de uma das histórias que ouvi naquele dia:

Uma educadora de uma sala com crianças de 5 a 6 anos de idade contou que, após um tempo estipulado para desenhar o Coelho da Páscoa, começou a recolher os desenhos. Segundo ela, um menino nem percebeu sua aproximação, pois estava como que paralisado, olhando com ar intrigado para o seu desenho. Com grande sensibilidade, a educadora não o interrompeu. O desenho se apresentava da seguinte forma:

Então, segundo ela, depois de algum tempo, os olhos do menino se “acenderam”, como se ele tivesse acabado de ter uma grande ideia. Tomando um lápis, ele traçou algumas linhas, olhou satisfeitíssimo para sua obra e chamou a educadora, dizendo, “Pronto, acabei!”.

Veja o desenho que foi entregue pela criança de 5 anos de idade que, antes disso, já havia passado por dois anos de coelhos prontos para colorir:

O que aconteceu? A explicação é simples e fascinante: já acostumada a colorir coelhos, a criança começou a desenhar seu próprio Coelho da Páscoa, aproveitando o espaço aberto para isso. Desenhou o coelho, depois desenhou vários ovos coloridos.

 Foi quando ela percebeu uma terrível contradição, que a fez ficar paralisada:

 “Como assim, um coelho que bota ovos?”…

 “Como resolver esse problema? Como sair dessa situação? Quem é que coloca ovos? … Ah!”

 

Essa parece uma descrição razoável dos processos de raciocínio que fizeram que o desenho, que parecia incompleto, ficasse “pronto” após a colocação de duas patas de galinha no coelho. Afinal de contas, as galinhas colocam ovos…

 Não é interessante? Uma situação que mobiliza os conhecimentos, a imaginação e a criatividade da criança. Quantas situações dessas deixam de existir, a cada ano, com a invasão dos coelhos prontos para colorir?

Mesmo se existem argumentos a favor dos desenhos para colorir, que podem trazer para algumas crianças uma sensação de segurança e a percepção de limites claros além dos quais não se deve ir, o fato é que eles fizeram e continuam a fazer um verdadeiro estrago, se estamos preocupados em desenvolver a criatividade infantil. Hoje em dia sabemos que existem até mesmo pesquisas que mostraram efeitos positivos de desenhos prontos para colorir sobre as produções de algumas crianças, mas a idéia geral de Viktor Lowenfeld e a conclusão tirada das pesquisas de que ele dispunha ainda continua válida e merece ser repetida: desenhos prontos para colorir são uma dieta terrível para nossas crianças, nos lares e nas salas de aula.

Uma ideia para ser completada, jamais esquecida

 Lowenfeld já se espantava, antes de 1950, ao ver os desenhos para colorir aparecendo ao longo de todo o ano letivo.  Podemos perfeitamente adaptar seu raciocínio ao nosso país, em pleno século XXI:

De maneira bastante surpreendente, ainda encontramos folhas mimeografadas que se entregam aos jovens para colorir a silhueta de George Washington, o contorno do peru do Dia de Ação de Graças, do coelho da Páscoa ou mesmo de uma árvore de Natal.[v]

Espero que, a essas alturas, você perceba um pouco melhor porque um arte educador como Viktor Lowenfeld revoltava-se contra os desenhos prontos para colorir. Arte educadores sabem que, de umas décadas para cá, muitas propostas vieram enriquecer nossas concepções sobre a arte, seu papel e sobre formas de abordá-la com nossas crianças.  Por exemplo, no Brasil o nome de Ana Mae Barbosa está associado desde os anos 1980 à proposta de enriquecer a Educação Artística através do contato com obras de arte de qualidade e do incentivo à sua análise e reinterpretação criativa. [vi]

As novas contribuições devem ser integradas à nossa reflexão sobre arte educação, mas eu continuo achando que, apesar de até estar “na moda” há alguns anos dizer que Viktor Lowenfeld “está superado”, ainda é ele que diz de forma mais clara algumas coisas básicas que não deveriamos jamais esquecer, e parece que esquecemos…

 Encerrando com a ajuda um gênio

 Para concluir, gostaria de propor uma reflexão sobre uma anedota, uma história que é contada a respeito do genial pintor espanhol Pablo Picasso (1881–1973).

Diz a lenda que ele estava um dia sentado numa calçada de Paris, pintando, quando uma senhora se aproximou, segurando o filho pequeno pela mão. Ela parou e durante algum tempo ficou observando o trabalho do pintor. A uma certa altura, depois de fazer muitas caretas, não se conteve e disse, em alto e bom tom:

 – O Sr. me desculpe, mas isso aí até o meu filho faz!

 E Picasso teria respondido, na hora:

 –  Ele sim, a senhora não!

Essa anedota é apócrifa, ou seja, não sabemos se ela é verdadeira ou não, mas sabemos com certeza que Picasso disse:

 – Levei a vida toda para aprender a desenhar como uma criança…

Essa história vem reforçar a idéia defendida aqui: se queremos desenvolver a expressão e a criatividade, é preciso incentivar o modo de expressão próprio de cada criança, e não sufocá-lo com um verdadeiro jardim zoológico de desenhos prontos para colorir…

Encerro meu argumento lembrando alguns dos grandes riscos a que nossas crianças são expostas, todos os anos, a medida que se aproxima a Páscoa: o incentivo ao consumismo, o excesso de chocolate e os mais do que indigestos, e perigosos, coelhos prontos para colorir…

Notas:

[i] Essa e as próximas citações são de: Viktor Lowenfeld. A criança e sua arte. São Paulo: Mestre Jou, 1977, páginas 23 e 24.

[ii] As três imagens apresentadas são retiradas da página 25 do livro A criança e sua arte. Não consegui localizar nenhum representante da Editora Mestre Jou, que não está mais em atividade, para solicitar a liberação para uso das três imagens. Deixo aqui as referèncias que consegui obter sobre a fonte em que Viktor Lowenfeld foi buscá-las: Irene Russel e Blanche Wauganam, em: “Research Bulletin of Eastern Arts Associaton”, vol. 3, No 1, 1952.

[iii]Em: A criança e sua arte, página 24.

[iv] Viktor Lowenfeld e W. Lambert  Britain. Desenvolvimento da capacidade criadora. São Paulo: Mestre Jou, 1977, páginas 69 e 70.

[v] Idem, página 69.

[vi] Ana Mae Barbosa.  A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 1991.

 

 

A3 – Os “erros” infantis, o que NÃO fazer com eles…

A HISTÓRIA DO PEQUENO REINO – Texto complementar 3

O QUE FAZER COM OS ERROS INFANTIS ou: NADA PODE SER MAIS ERRADO DO QUE DIZER QUE O DESENHO DE UMA CRIANÇA ESTÁ ERRADO!

Este artigo é indicado, juntamente com o artigo anterior, como complemento à leitura da DISCUSSÃO 4, e discute mais uma ideia básica e fundamental para quem busca desenvolver as capacidades de expressão de suas crianças.

Começo essa conversa com o relato feito já há alguns anos por uma amiga que, como parte de seu processo de preparação para ser professora de uma escola particular voltada para crianças de famílias abastadas ,estava observando uma sala de Educação Infantil da escola. Ela me relatou a seguinte cena:

Em uma sala de Jardim II, as crianças desenham, sobre um tema escolhido pela professora. Um menino  de 5 anos termina seu desenho e o entrega para a professora, com ar satisfeito.A professora olha o desenho, pega uma borracha, apaga uma parte do desenho e diz:

 – Aqui está errado, desenhe de novo!

A primeira reação que essa historinha provocou em mim, e em várias outras pessoas a quem a relatei, foi de indignação. Os comentários, em rodas de conversa informais, são do gênero “mas que burrice!”, ou até mais agressivos que isso. Parece fácil identificar-se com a criança e com a decepção que ela pode ter sentido.

Passada essa primeira reação, tento refletir e justificar esse sentimento de indigna-     ção. Outra frase dita sob o jugo da emoção me coloca na pista:

 “Mas que ideia demente: corrigir o desenho de uma criança de 5 anos!”

É aí que começa o grande equívoco de nossa professora: permitir-se tratar o desenho de uma criança de 5 anos como se fosse um exercício de matemática.

 Em seguida, o modo de “tratamento do erro” também é equivocado.

 “Mas que atitude absurda: apagar o desenho de uma criança de 5 anos!”

Quando uma professora de Ensino Fundamental corrige um exercício de matemática feito por um aluno, não é recomendável o procedimento de apagar o que está errado e mandar fazer de novo… O que se deve buscar é envolver a criança em uma análise do que ela fez, discutir, incentivar o raciocínio e a auto correção…

Professoras que têm por hábito reagir às produções infantis com “está certo” ou “está errado” precisam rever seus procedimentos. Constance Kamii nos explica uma razão fundamental para não encararmos nem mesmo o ensino da Matemática dessa forma:

Quando ensinamos número e aritmética como se nós adultos fôssemos a única fonte válida de retroalimentação, sem querer ensinamos também que a verdade só pode sair de nós. Então a criança aprende a ler no rosto do professor sinais de aprovação e de desaprovação. Tal instrução reforça a heteronomia da criança e resulta numa aprendizagem que se conforma com a autoridade do adulto.  Não é dessa forma que as crianças desenvolverão o conhecimento do número, a autonomia, ou a confiança em sua habilidade matemática.[i]

Se esse tipo de reação às produções de alunos já é desaconselhável para ensinar Matemática, o que dizer então de alguém que pretende utilizá-lo ao analisar as atividades de desenho propostas para a Educação Infantil? O que pensar da mesma atitude em uma área em que não há nenhum consenso em torno da critérios de “certo” ou “errado” e em que deve prevalecer o incentivo ao desenvolvimento da personalidade e dos modos próprios de expressar-se de cada um?

 “Até a concepção de erro dela está errada!”

Mesmo se em muitos casos as práticas dentro das salas de aula ainda não se modificaram muito, mudaram definitivamente as nossas concepções sobre o erro e como ele deve ser tratado no processo de ensino escolar. Hoje o foco é cada vez mais, como afirma o espanhol Saturnino de la Torre, em:

descobrir o potencial construtivo, didático e criativo do erro, diante de seu habitual caráter sancionador.[ii]

Aliás, seria importante que a professora entendesse que o conceito de erro simplesmente não tem seu lugar no trabalho com desenho e com outras formas de expressão artística. Não se deve falar em “certo” ou “errado”, e muito mais importante do que avaliar os desenhos infantis é garantir a chance a todos de experimentar e incentivar cada criança a buscar formas cada vez mais pessoais de expressão.

Na área da Matemática, uma boa sala é aquela em que todas as crianças dão a mesma resposta correta a um problema; na área da Educação Artística, o oposto é que deveria valer: quanto mais diferença houver entre o estilo de cada criança, quanto mais nos surpreendemos com a infinidade de caminhos e formas de representação, melhor estaremos fazendo o nosso trabalho educativo.

Outra abordagem crítica da atitude da professora pode ser feita a partir da reação de uma colega a quem contei o caso:

“Mas que absurdo! Será que ela não sabe que não é pra isso que serve desenhar, na Educação Infantil?”

Quando pedimos a uma criança que desenhe, podemos ter inúmeros objetivos, e parece haver entre os educadores um certo consenso sobre alguns deles: oferecer experiências positivas de contato com os diferentes materiais que podem ser usados para desenhar e escrever, incentivar a busca de caminhos próprios de expressão e a retomada criativa de experiências pessoais, e até favorecer o desenvolvimento da auto estima em atividades que não se prestam às formas tradicionais de avaliação escolar.

No nosso exemplo, aparentemente a atividade estava cumprindo bem essas funções, pois o menino estava muito satisfeito ao entregar o seu desenho, havia vivido uma experiência positiva de contato com esse modo de expressão.

 Que tipo de reação da professora seria mais apropriada, no caso?

 “Qualquer coisa, menos o que ela fez!”

No mínimo, olhar o desenho com carinho, se possível elogiá-lo, sugerir que a criança o assinasse, guardá-lo com cuidado, ou usá-lo em um mural da sala, ou devolvê-lo para a criança, para ser levado para casa ou guardado em alguma pasta sua…

Jamais, nesse contexto, a prioridade da professora deveria ser julgar o desenho em termos de certo ou errado. Muito menos apagar uma parte e devolvê-lo, invalidando o valor do esforço de expressão da criança.

Lembro-me de uma linda citação de Herbert Read, ao falar sobre arte e sobre os grandes artistas:

Poder-se-ia dizer muito simplesmente que o artista ao pintar uma paisagem (e tal se aplica a qualquer obra que o artista faça) não deseja descrever a aparência da paisagem e sim dizer-nos algo a respeito.[iii]

Se trocarmos a palavra “artista” por “criança” – e levarmos em conta que tanto a experiência da criança quanto a descoberta de suas possibilidades de expressão ainda estão pouco desenvolvidas – , podemos ter uma idéia de um aspecto central da concepção de arte infantil de muitos autores. Lembrar-se disso pode nos auxiliar na hora de darmos uma opinião, ou nos fazer pensar duas vezes antes de criticar uma obra que a criança vem nos mostrar…

A nossa professora do exemplo parece sofrer de uma doença da qual a Educação Artística já deveria ter nos libertado há décadas: a “síndrome do céu azul”, que leva a exigir desenhos realistas, em que a grama seja sempre verde, as proporções entre as pessoas mantidas, etc. Esse não é o espaço para discutir isso, mas pessoas que ainda pensam assim, em pleno século XXI, deveriam ser mantidas afastadas de nossas escolas e de nossas crianças…

“Mas e se a professora pediu um desenho específico, e a criança não desenhou como ela pediu?”

Parece claro que, na situação discutida, a professora tinha um objetivo preciso ao propor o desenho, e queria algo como uma representação “realista”. O mínimo que se esperava é que ela tivesse cuidado ao explicar o objetivo da atividade e, especialmente, ao analisar o desenho produzido pela criança e solicitar que ela o refizesse. Mesmo assim, essa ainda seria uma história bastante triste.

Ao pensar sobre esse caso, lembrei de ter observado algumas vezes, no trabalho com salas de Educação Infantil, desenhos de crianças de 4 ou 5 anos em que a professora fazia, com a famigerada caneta vermelha, o clássico símbolo de “certo” ou “meio certo!”. Talvez esse seja um consolo para a professora de nosso exemplo: ela não está sozinha em seu equívoco!

Seria preciso convidar essa professora a refletir sobre seu modo de atuar, levando-a inclusive a imaginar a situação sob o ponto de vista da criança que teve seu desenho apagado e recebeu um “faça de novo” como feedback.

Talvez um processo desses, acompanhado de um diálogo e de uma boa discussão sobre os fundamentos da Educação Artística, ajudasse-a a mudar seu comportamento. Mas talvez não, e parece-me que esse triste exemplo ilustra um processo que acontece em grande escala: uma contaminação terrível da Educação Infantil pelo espírito equivocado da escola julgada “séria”.

Minha impressão é que esse tipo de atitude tem uma explicação que é, acima de tudo, sociológica: é para se diferenciarem dos outros que muitas professoras recorrem a procedimentos que parecem “técnicos” e imitam sem critério modos de agir de séries mais avançadas. O uso completamente inapropriado de estratégias didáticas transpostas para um novo contexto é, na verdade, um recurso em sua tentativa de mostrar que “sabem mais” que educadoras menos qualificadas que atuam nos mesmos espaços. Ou, pelo contrário, é uma tentativa de educadoras com pouca qualificação para parecem mais competentes, ao fazerem algo que parece complicado….

Ora, cada vez mais eu tenho a convicção que o caminho para uma escola eficiente e mais feliz exige precisamente o contrário: que o Ensino Fundamental e até o Ensino Médio se deixem impregnar pelo espírito lúdico da boa Educação Infantil, que recebam de braços abertos o devaneio, a imaginação, o direito de passear ou, no sentido mais amplo da palavra, que reconheçam o direito de errar…

Será que eu estou certo? O que você acha? Será que eu tenho que apagar tudo?

Puxa, como eu queria ter sido educado em escolas com mais espaço para errar…

Esse artigo faz parte da proposta pedagógica “A História do Pequeno Reino”, de Luca Rischbieter, que pode ser acessada no endereço: www.lucapr.com.br

 Notas:

[i] Constance Kamii. A criança e o número. Campinas: Papirus, 1984. Página 68.

[ii] Saturnino de la Torre. Aprender com os erros: o erro como estratégia de mudança. Porto Alegre: Artmed, 2007. Página 10.

[iii] Herbert Read O sentido da arte. São Paulo: Ibrasa, 1968. Página 112.

Pequeno Reino – Artigo 4

A HISTÓRIA DO PEQUENO REINO – Texto complementar 4

 ESCOLA E DEMOCRACIA

Este artigo repete alguns dos argumentos apresentados na DISCUSSÃO 17, sobre as melhores formas de educar para a democracia.

A escola é uma das instituições que, historicamente, está associada a processos de democratização em todo o planeta. Países que se democratizam são países que aumentam o acesso à educação – em todos os níveis – para todas as camadas da população.

Mas, na verdade, as escolas podem e devem ter um papel muito mais ativo na formação para a democracia. Isso precisa acontecer no mundo inteiro, especialmente em países como o Brasil, que tem uma história marcada por injustiças e barbaridades como a escravidão e por governos autoritários que se julgam no direito até mesmo de prender e assassinar pessoas que pensam as coisas de forma diferente da sua.

É normal que nos esqueçamos, em períodos mais democráticos, de que o nosso país foi o último do planeta a abolir a escravidão e que vivemos longos e tenebrosos períodos de ditadura, o que aliás ajuda a explicar a excessiva passividade da imensa maioria de nós, quando se trata de exercer a cidadania e o direito de protestar contra a falta de ética de políticos e de governantes. Nossa democracia é jovem e precisa ser aprimorada, se quisermos que cresça e se torne cada vez mais robusta e “entranhada” na mentalidade de nossos(as) compatriotas de todas as idades.

Por isso é que, nessa discussão, eu acho que a primeira grande questão que a escola deve se fazer é:

SOMOS OU NÃO SOMOS A FAVOR DA DEMOCRACIA?

Em 2010 (ano de publicação deste artigo), sabemos que os governos de muitos países responderiam “não” a essa pergunta. O Irã e a China são dois exemplos pra lá de significativos disso. Felizmente, atualmente, em nosso país, governos e escolas respondem com um grande e sonoro “sim, queremos ensinar para a democracia”.

O que nos leva a próxima questão:

ESTAMOS ENSINANDO DEMOCRACIA BEM?

Formar para a democracia envolve bem mais do que simplesmente “dar aulas” sobre a importância da democracia, sua história, sobre o combate muitas vezes violento e trágico por ela.

Em 1933, quando o Brasil ainda não havia realizado suas primeiras eleições que tiveram uma participação razoável da população e foram consideradas limpas (o que aconteceu em 1945), Anísio Teixeira (1900 – 1971), um de nossos maiores educadores, publicava a primeira edição do livro Educação Progressiva: uma Introdução à Filosofia da Educação, com críticas à escola que merecem ser meditadas até hoje, e que vão ao centro do debate que propomos.

A principal crítica de Anísio Teixeira era contra a excessiva passividade imposta a alunos e alunas, nas aulas. Isso ensinava uma série de hábitos incompatíveis com a formação para a democracia. Veja o que ele dizia sobre os efeitos negativos de uma escola que “dá aulas” o tempo todo, utilizando o exemplo das aulas de matemática:

Ora, a escola tradicional nunca percebeu que, em uma lição de aritmética, podia estar ensinando as crianças a não terem coragem, a não serem sociais, a alimentarem complexos de inferioridade, etc., de que iriam sofrer por toda a vida.

Então vemos que a velha escola, onde as crianças iam para fazer aquilo que não queriam, com uma disciplina semi-militar, está profundamente inadequada não só para a sociedade presente, como para a própria concepção moderna da aprendizagem.[1]

A pergunta que podemos nos fazer é: será que ainda estamos na “velha escola” a que se referia Anísio Teixeira em 1933? Será que, em pleno século XXI, estamos fazendo algo mais do que “dar aulas” – quase o tempo todo, todos os anos, dias e horas – em nossas escolas?

O que nos leva a uma nova questão:

COMO ENSINAR DEMOCRACIA?

Já que dar aulas sobre democracia está longe de ser suficiente para ensiná-la, o que podemos fazer? A resposta de pedagogos como Anísio Teixeira e de psicólogos como Jean Piaget (1896-1980) a essa pergunta é de uma simplicidade espantosa:

A melhor maneira de aprender democracia é praticando democracia!

Aliás, nada mais sensato, não é mesmo? Vejamos algumas citações de Piaget:

Unicamente a vida social entre os próprios alunos, isto é, um auto-governo levado tão longe quanto possível e paralelo ao trabalho intelectual em comum, poderá levar a este duplo desenvolvimento de personalidades donas de si mesmas  e de seu respeito mútuo.[2]

Auto-governo? Uma escola governada por alunos e alunas? É isso mesmo que Piaget, admirador confesso de pedagogos revolucionários como Freinet e Makarenko, está dizendo:

O problema é saber o que vai preparar melhor a criança para seu futuro papel de cidadão. Será o hábito da disciplina exterior adquirido sob a influência do respeito unilateral e da coerção adulta, ou será o hábito da disciplina interior, do respeito mútuo e do auto-governo? [3]

A criança, quando não está como na escola condenada à guerra contra a autoridade, é capaz de disciplina e de vida democrática.[4]

Sempre me divirto relendo essas declarações de Piaget, que tantas pessoas e escolas que se pretendem “construtivistas” nem ao menos discutem.

Aliás, acho a visão de Piaget meio ingênua e muito radical. As experiências de escolas auto governadas são fascinantes, mas raras e difíceis de reproduzir em grande escala. Mas, por outro lado, também acho que essas afirmações apontam caminhos super fáceis de implementar para escolas que buscam um dia a dia cada vez mais democrático:

Se queremos formar para a democracia, devemos aproveitar, sempre que possível, inúmeras chances que aparecem para favorecer debates, trocas de pontos de vista, elaboração coletiva de regras, etc.

O mais importante, na perspectiva de uma escola que quer formar para a democracia,  é pensar em situações que possam contribuir para desenvolver a competência de interagir dialogicamente com os outros.

Isso pode acontecer tanto dentro das salas de aula –  na medida em que aumentamos as atividades realizadas em duplas e em pequenos grupos, em que usamos jogos, dramatizações, debates e julgamentos simulados, discussões sobre regras de convivência, etc. – quanto fora dela – através do envolvimento em campanhas de caráter cívico (como a luta por uma melhor sinalização do trânsito ou o apoio a uma instituição carente próxima à escola) e do incentivo à criação de grupos de interesse extra escolares (como grêmios de estudantes e clubes de alunos interessados em astronomia, em xadrez, etc. ).

Idéias como essas, incorporadas ao cotidiano de nossas escolas, ajudam a formar pessoas mais bem preparadas para a cidadania em uma democracia, ou seja, pessoas que sabem dialogar e tomar decisões em conjunto, sem recorrer ao autoritarismo.

E de quebra, como veremos em nosso último item, ajudam também a formar pessoas mais inteligentes:

EDUCAÇÃO PARA A DEMOCRACIA E DESENVOLVIMENTO INTELECTUAL

Ensinar para a democracia, de forma mais dialógica e ativa, pode contribuir também para o desenvolvimento intelectual de nossos(as) estudantes.

Em 1966, um especialista em Didática, inspirado por Piaget, afirmava essa idéia com clareza:

Podemos dizer que a criança que troca idéias com seus semelhantes e com o adulto é levada a organizar de maneira operatória seu próprio pensamento. Os contatos sociais da criança desempenham assim, papel de primeiríssima importância em seu desenvolvimento intelectual.[5]

Não é preciso ser construtivista ou piagetiano para concordar com essas idéias, um pouco de reflexão e de bom senso bastam. Outra piagetiana importante, Constance Kamii, também afirma que ambientes mais “democráticos”, ricos em experiências e desafios, são ideais para a inteligência infantil, e ela faz um alerta muito interessante:

Uma criança educada numa família autoritária tem muito menos oportunidades de desenvolver sua habilidade de raciocinar logicamente.[6]

O mesmo vale para as escolas: quanto mais autoritário o ambiente escolar, menos chances as crianças terão de desenvolver sua própria inteligência.

Ou seja, a medida que conseguirmos diminuir o monopólio da atividade de “dar aulas”, e que introduzirmos processos de ensino-aprendizagem mais diversificados e formas de interação cada vez mais dialógicas, estaremos contribuindo não apenas para a construção de um país mais democrático, mas também para a formação de novas gerações mais inteligentes.

Eu acho essas idéias tão sensatas que gostaria, de forma nada democrática, que todo mundo fosse obrigado a meditar sobre elas…


Nota:

[1]  Anísio Teixeira. Educação Progressiva. São Paulo: Melhoramentos, 4ª ed., 1953, página 49.

[2] Jean Piaget. Para onde vai a educação? Rio de Janeiro: José Olympio, 1996, página 63.

[3] Jean Piaget. O juízo moral na criança. São Paulo: Summus, 1994, página 270.

[4] Idem, página 270.

 

[5] Hans Aebli, Didática psicológica. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1974, página 70.

[6] Constance Kamii. A criança  e o número.Campinas: Papirus, 1984. Página. 47.

Pequeno Reino – Artigo 5

A HISTÓRIA DO PEQUENO REINO – Texto complementar 5

A paciência de Jó dos computadores

Nesse artigo você vai encontrar trechos inteiros que podem ser vistos na DISCUSSÃO 19. Mas o tratamento da questão do potencial dos softwares educativos é feito aqui de forma um pouco mais elaborada.

Existe uma grande diferença entre a atividade de um pesquisador acadêmico e a de um professor ou de um pedagogo: enquanto pesquisadores buscam análises detalhadas e certezas comprovadas, pedagogos não podem esperar que isso aconteça, o que os interessa são idéias fortes e aplicações práticas.

Estou defendendo neste artigo, escrito mais pela ótica do pedagogo que pela do pesquisador, uma idéia que pode ser resumida assim: apesar de sua grande variedade, todos os softwares educativos têm uma característica comum, que é sua infinita paciência em relação aos erros das crianças.

A conseqüência prática é que essa é uma propriedade que pode ser explorada para melhorar processos de aprendizagem específicos e ao mesmo tempo ajudar o desenvolvimento de uma auto-imagem mais confiante e positiva em nossas crianças e jovens.

Começamos com um exemplo que ilustra esse ponto de vista. A história foi contada há alguns anos por um professor que trabalhava, em Curitiba, em uma instituição de apoio psicopedagógico a alunos(as) de escolas públicas com “dificuldades de aprendizagem”. Nela, ele relata o uso que fez de um software que todos nós considerávamos de péssima qualidade, pois se limitava a apresentar “continhas” com frações em um contexto graficamente muito pobre e que não tinha relação nenhuma com o conteúdo do jogo:

Antes de usar o software ‘x’ com os alunos, eu achava este um péssimo produto, sem nenhuma criatividade, mecânico. Mas, como ele era o único jogo de computador disponível na área de Matemática, nós o experimentamos com um grupo de alunos ‘fracos’ e repetentes de 3.ª série, muito atrasados em Matemática. Os resultados me impressionaram. Isso porque, depois de muitos erros, eles foram selecionando níveis cada vez mais simples de desafios e chegaram a exercícios que até mesmo eles conseguiam resolver. Foi muito impressionante ver sua reação quando apareceu ‘½ + ½ =?’ na tela: todos começaram a dizer, excitados, ‘1, coloca 1!’ e, quando receberam a mensagem de ‘parabéns!’, seus rostos se iluminaram. Eles adoraram a interação proporcionada pelo software, que aplaudia os acertos e não reprimia os erros. Além disso, usamos a possibilidade de cadastrar novos desafios para oferecer problemas que eles começaram a resolver (os mesmos que não queriam fazer com lápis e papel). Os resultados foram ótimos, inclusive em relação à performance na escola, principalmente porque essas crianças ganharam confiança interagindo com o software. (Relato do professor Marco Aurélio Mikosz)

Os alunos mencionados aqui eram considerados “péssimos” e já viviam com a sina de serem vistos assim, dentro e fora da escola. O que existe de quase absurdo nessa história é que foi somente com um software de qualidade medíocre que esses alunos viveram suas primeiras experiências escolares de “acertar”. É essa experiência que parece ter sido decisiva na mudança que acabou levando, até mesmo, a grandes melhoras desses alunos em seu rendimento dentro da escola.

O exemplo ilustra uma hipótese que, mesmo que apresentada aqui de forma um pouco “crua”, é fruto de bastante reflexão e algo com que muitos(as) de nós devem concordar:

A imensa maioria das dificuldades de aprendizagem não se deve a “deficiências cognitivas”, mas à falta de autoconfiança de crianças e de adolescentes que se acostumaram a ouvir e a dizer “não sei”, “não posso”. Alunos(as) que internalizam essa visão negativa acabam nem se engajando em análises específicas, pois, diante de uma dificuldade, ficam como que paralisados(as) pela autocrítica e pela convicção de sua própria incompetência.

A escola não parece capaz, na maioria dos casos, de mudar essa situação (aliás, muito pelo contrário). Mas é preciso parar de culpar os professores por isso. Quem é ou foi professor sabe que é quase impossível para quem lida com grupos de20 a30 alunos concentrar seu trabalho nos alunos “mais fracos”, pois é preciso dar aulas para “a média”, para “a maioria” que consegue acompanhar o ritmo. “Atrasados” desde o começo, muitos alunos acabam passando seus anos de escola sendo cada vez mais marginalizados.

Devido à grande paciência dos computadores, interações com softwares educativos podem ser um novo elemento para nos ajudar a tentar mudar essa situação.

Mais um exemplo: crianças de ciclo 1 que têm dificuldade para ler podem se divertir e aprender muito com softwares e desafios concebidos para crianças em idade pré-escolar. Até mesmo um jogo simples como o da “forca” adquire características novas ao ser desenvolvido para computadores e é grandemente apreciado por crianças sem confiança para jogá-lo fora do computador.

Mas por que isso acontece? Essa é uma questão interessante e que precisa ser mais explorada e discutida, mas, aparentemente, a impessoalidade e a paciência infinita dos programas de computador — mesmo que eles jamais possam ter a sensibilidade de um bom educador — fazem com que até mesmo os erros sejam vistos de forma lúdica. O fato de receber o tempo todo reações positivas, mesmo em caso de erro, de uma tela de computador faz com que essas situações não sejam vivenciadas como “punição” ou “censura”, ao contrário do que pode acontecer quando a avaliação fica a cargo de alguém de carne e osso…

Muitos especialistas criticam os softwares simples e primários, como os de nossos exemplos, e defendem o uso apenas de materiais em que haja espaço para criação, autoria e comunicação. Pessoalmente, já tive a mesma visão e continuo a favor do desenvolvimento e do uso de softwares cada vez mais sofisticados — como as novas versões do Logo ou produtos como o Cabri Geômetra. Mas também defendo a idéia de que até mesmo os softwares mais simples e elementares podem trazer resultados surpreendentes e que eles não devem ser descartados de nosso “arsenal” de recursos didáticos, principalmente porque normalmente são mais acessíveis e baratos.

Com uma boa biblioteca de softwares, uma opção, quando encontramos alunos com dificuldades em alguma área específica, é procurar atividades, nessa mesma área, que sejam dirigidas a uma faixa de idade inferior à desses alunos.

Aliás, o mesmo princípio vale para todos(as) os(as) alunos(as), e, por exemplo, uma criança que gosta muito de Matemática pode explorar produtos que oferecem desafios matemáticos para níveis de estudo cada vez mais avançados, em vez de ser obrigada — como acontece hoje em dia — a seguir o mesmo ritmo de toda a classe, vendo exercícios que já sabe resolver.

Os exemplos ilustram a idéia de que um bom acervo de softwares educativos pode nos ajudar na implementação do que atualmente chamamos de uma “pedagogia diferenciada”, pois permite diversificar as possibilidades de atividades oferecidas a alunos e alunas e proporcionar desafios mais adequados para cada um(a).

Para concluir, é importante deixar muito claro que atualmente, do ponto de vista da pesquisa acadêmica, nós simplesmente não sabemos quase nada sobre o que está sendo discutido aqui, sobre as novas e diferentes concepções de “erro” e “acerto” que se desenvolvem e sobre o que nossas crianças podem tirar de suas interações com computadores e softwares, mesmo quando estes podem ser considerados de baixa qualidade e embasados em teorias de aprendizagem ultrapassadas.

Mas “não saber quase nada”, enquanto pesquisadores, não pode ser uma desculpa para deixarmos de explorar — pragmaticamente, no dia-a-dia da escola e da família — a possibilidade de que até mesmo o uso de softwares educativos extremamente simples possa produzir resultados surpreendentes. Não podemos ter a mesma paciência que têm os computadores e aguardar as certezas acadêmicas, pois temos urgência em ensinar de forma cada vez mais diversificada e melhor.

Este artigo se encerra, assim, com um duplo convite: aos pesquisadores, para que dêem mais atenção à natureza específica das interações criança—computador e não restrinjam suas análises apenas ao uso dos softwares mais sofisticados; e aos educadores, para que levem em conta a possibilidade de que, graças à sua “paciência de Jó”, os computadores associados aos softwares educativos sejam aliados poderosos não apenas para ensinar, mas para alcançarmos um dos objetivos mais importantes e básicos da educação: ajudar cada criança a construir uma auto-imagem positiva.