Nos últimos anos, as teorias que defendem o determinismo biológico do desenvolvimento humano ganharam muita força, graças aos conhecimentos cada vez maiores sobre o funcionamento de nosso cérebro e sobre as bases genéticas de nossa existência.
A violência e o sadismo estão entre as características humanas que, segundo essa corrente, podem ser explicadas pela Biologia e pela Neurologia. Para alguns, a violência é uma característica inata e um dia será tão previsível quanto, por exemplo, o desenvolvimento de doenças genéticas.
Por outro lado, não são poucos os autores que afirmam que essas ideias são incompletas e que jamais poderemos compreender a violência ou qualquer fenômeno psicológico se ignorarmos a influência do meio cultural e social sobre a formação da personalidade.
Para ilustrar esse ponto de vista, vamos usar um exemplo encontrado em “Casa-Grande & Senzala”, de 1933, um dos maiores clássicos da sociologia brasileira. O autor, Gilberto Freyre (1900-1987), fala sobre os terríveis efeitos da escravidão sobre a formação dos brasileiros na época do Império. Ele discute o caso de José Bonifácio (1763-1838), tutor de D. Pedro I e um dos primeiros defensores da abolição da escravatura a ocupar uma posição de grande poder no Brasil Império.
Freyre cita um discurso abolicionista feito por Bonifácio em 1823, e pergunta-se: “José Bonifácio, ao escrever libelo tão forte contra a escravidão, não sabemos se teria consciência dos vícios de caráter por ele próprio adquiridos no contato dos escravos: seu estranho sadismo, por exemplo.”
Para exemplificar o “estranho sadismo” de José Bonifácio, Freyre conta que “revelou-o bem ao assistir por puro prazer, sem nenhuma obrigação, ao castigo patriarcal que a soldados portugueses mandou infligir de uma feita o imperador D. Pedro I no campo de Santana: cinquenta açoites em cada um. Castigo de senhor de engenho em negros ladrões (…). Alguns soldados terminaram deitados de bruços sobre o chão, vencidos pela dor da chibata. José Bonifácio, que assistiu a tudo por gosto, conservou-se no campo até o final da flagelação”.[1]
Podemos concordar com Freyre quando diz que o desejo de José Bonifácio de assistir até o fim ao castigo aplicado aos soldados mostra um certo sadismo da sua parte. E o sadismo e a violência estão entre as características que as teorias criticadas aqui atribuem à herança genética dos indivíduos. Se um sujeito é violento, é porque ele estava geneticamente predisposto a isso. Gilberto Freyre, grande sociólogo, nega essa redução do indivíduo a um átomo fechado ao mundo, e insiste na importância das relações sociais para a formação da personalidade: “Outras evidências poderiam juntar-se de vários traços, no caráter de José Bonifácio, que se podem atribuir à influência da escravidão.”
“Nada disso, José Bonifácio teria sido um sádico em qualquer época, estava escrito em seu programa genético.” Freyre rebate facilmente esse argumento: “Se destacamos José Bonifácio é para que se faça ideia da mesma influência sobre homens de menor porte e personalidade menos viril.” Se ele, que era contra a escravatura e defensor de valores humanistas, já era meio sádico, imaginem os outros…
Gilberto Freyre fala também sobre o sadismo e a violência na relação entre crianças da elite e escravas. Como exemplo, ele usa um trecho de Machado de Assis (1839-1908), em que o personagem Brás Cubas faz um relato “autobiográfico” de sua infância: “Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava-lhe mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – algumas vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito um – ‘ai, nhonhô’ – ao que eu retorquia: ‘Cala a boca, besta!’ (…) Meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.”[2]
A conclusão dessas revoltantes histórias de sadismo e de racismo é irrefutável: mesmo com um “equipamento genético” idêntico, um país em que existe a escravatura terá mais pessoas violentas e sádicas do que um país onde não há esse flagelo.
A desigualdade que marca as relações sociais leva a uma repetição contínua de situações como as que vimos nos dois exemplos, que simplesmente não poderiam ser corriqueiras em uma democracia, e isso afeta o desenvolvimento de cada pessoa. Para nós, herdeiros do injusto e violento país de José Bonifácio e Machado de Assis, fica claro o dever de lutar por relações sociais conduzidas cada vez mais sob o signo da igualdade e do respeito aos direitos humanos, para formarmos brasileiros cada vez menos sádicos e violentos…
Para concluir, é preciso perceber o quanto, mesmo estando na moda, são ridículas e incompletas as teorias que defendem a exclusividade do “determinismo biológico” na explicação de nossas condutas. Não somos só genes e cérebros; somos também corpos/mentes imersos em atmosferas, interações, culturas, linguagens, estruturas de poder e heranças sociais…
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1. Todas as citações são do capítulo IV de Casa-Grande & Senzala: “O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro”.
2. Gilberto Freyre retirou esse exemplo do capítulo XI de Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Fantástico, Luca! Simplesmente elucidador!!!
Obrigado, Sandra!
Interessante esse conteúdo, mas será que realmente condiz com a realidade esse negócio de cérebro ter relação com o signo?
Prezado Adamastor. Me perdoe pela demora em lhe responder, esse blog anda meio esquecido, A pergunta é ótima, e a resposta será breve e “vigotskiana”. Para Vigotski o que nos torna humanos é a atividade biológica mediada por símbolos. Começa com o cabo de vassourta que ajuda a criança a brincar de “andar a cavalo”, evolui para a linguagem, as linguagens, como a matemática específica de nossa sociedade, para dar mais exemplos. A relação cérebro símbolo é simples, e a definição vem de “pós vigokskianos” como Zinchenko, que dizem que, quando aprendemos um símbolo, o que há é NÃO é sua interiorização, mas construção de significado desse símbolo na atividade da pessoa. Então, com certeza, “condiz” sim, o cérebro é uma “máquina de produzir significado” e o símbolos enriquecem espetacularmente esses processos! É uma resposta pra lá de rápida à sua pergunta, mas que me parece compatível com o que aprendemos com os grandes psicólogos da aprendizagem e com os neurologistas contemporâneos. Abs!