A educação não é uma ilha, mas parte do continente da cultura.[1]
Em 05 de junho de 2016 faleceu o último dos grandes nomes do “quarteto fantástico” (ao lado de Wallon, Piaget e Vigotski) da psicologia da aprendizagem, Jerome Seymour Bruner, norte americano nascido em Nova Iorque em 15 de outubro de 1915.
Não é nada simples resumir uma trajetória secular, marcada pela abertura à cultura e ao diálogo com todos os campos do conhecimento, que deixou sua marca em praticamente todas as etapas e debates importantes da psicologia. É o que tentarei fazer aqui, ousando dividir a vastíssima obra de Bruner – apresentada em uma série de livros compostos por ensaios brilhantes – em quatro etapas, ou campos, principais:
1) Revolução cognitiva.
O início da trajetória de Bruner tem no ano de 1956 um marco fundamental, quando ele co-edita A Study of Thinking[2], uma das obras precursoras da revolução cognitiva. As pesquisas e análises do livro buscam as raízes do pensamento conceitual, estudado em situações de laboratório, e foram uma reação ao comportamentalismo vigente à época. Em um novo prefácio, de 1986, Bruner lembra que a insurreição original buscava nos livrar das correntes do behaviorismo anti-mentalista e recapturar a ideia funcionalista da mente operando não cegamente, mas com intencionalidade; mas observa que, com o avanço das ciências cognitivas, no lugar das correntes behavioristas, encontramos instalada uma nova espécie de corrente: a computacional[3], que ele julgava igualmente perigosa, por negar a intencionalidade, a colaboração, a experiência e a construção ativa de significado. Logo, Bruner passaria a outras linhas de pesquisa, e o desenvolvimento de sua psicologia cultural o levaria, cada vez mais, à pesquisa de aspectos da mente humana que podemos chamar de não racionais, envolvendo afetividade, interação e construção de narrativas.
2) Psicologia da aprendizagem escolar e reflexão sobre escola
Para muitos de nós, no Brasil, o contato inicial com Bruner aconteceu através de dois livros voltados para a Pedagogia: O Processo de Educação e Por uma Nova Teoria da Aprendizagem[4]. Nestas obras encontramos um verdadeiro “norte” para pensar materiais e atividades didáticas, com destaque para a ideia do “currículo em espiral”, que é claramente expressada por Bruner: Partimos da hipótese de que qualquer assunto pode ser ensinado com eficiência, de alguma forma intelectualmente honesta, a qualquer criança, em qualquer idade.[5] Um grande desafio, que colocava em cheque o conceito de “maturidade”, de períodos antes dos quais seria inútil tentar ensinar.
Apesar de serem as obras de Bruner mais conhecidas entre nós, há nestes livros uma aceitação implícita da função da escola como um espaço de ensino. O próprio Bruner sabia disso e, no resto de sua obra, encontramos uma visão de escola que é muito mais rica. Para nós, da Pedagogia, Bruner é decisivo, também, pela visão potencial de escolas como espaços culturais ricos e instigadores, em que crianças e jovens se apropriam ativamente dos recursos e das oportunidades oferecidos pela cultura mais ampla, construindo sua identidade pessoal e coletiva, inventado as suas próprias narrativas. Uma visão semelhante à de Dewey, apresentada de forma muito mais sofisticada e rigorosa.
3) Pesquisas com bebês e aprendizagem da língua materna.
Principalmente na década de 70, Bruner se envolve em uma série de pesquisas sobre as competências dos bebês. Um tema percorre o conjunto das pesquisas: as relações entre o desenvolvimento mental e a capacidade de construir comportamentos intencionais.[6] Bruner torna-se o mais importante pioneiro a falar sobre a riqueza das interações entre bebês e suas mães, sobre a capacidade de ação em conjunto, sobre como é impossível conceber o desenvolvimento humano isolando o bebê do meio em que ele cresce. Essas pesquisas logo se estenderiam à aprendizagem da linguagem, que Bruner também irá revolucionar, ao mostrar como ela surge inserida em uma rede incrivelmente complexa de interações sociais, em que mães e bebês constroem uma série de pequenos rituais com distribuição de papéis. Um de seus exemplos favoritos eram os jogos de esconder-achar, em que o bebê vai tornando-se progressivamente mais ativo. Para ele, a linguagem é adquirida como instrumento de regulação da atividade em conjunto e da atenção dividida. Indiscutivelmente, sua estrutura reflete essas funções e sua aquisição é impregnada dela.[7] Ao levar em conta a imensa riqueza desse universo de interações, Bruner faz uma crítica definitiva às visões ineístas sobre como aprendemos a falar.
4) As narrativas como pilar da psicologia cultural
As últimas décadas de atividade são devotadas à reflexão sobre uma psicologia radicalmente cultural que, sem negar os avanços do conhecimento biológico, parte do princípio de que sem as ferramentas da cultura, o homem não é um “macaco nu”, mas uma abstração vazia.[8] Bruner – que em 1962 já afirmava que a arte é a forma mais avançada de comunicação[9] – dedica-se cada vez mais ao que há de não lógico, de metafórico na atividade humana e, estudando textos tão diversos como os jogos de crianças, autobiografias ou decisões jurídicas, defende a importância das narrativas na construção de nossas identidades. Vivemos em um mar de histórias, e como os peixes (segundo o provérbio) serão os últimos a descobrir a água, temos nossas próprias dificuldades para entender como é navegar em histórias.[10]
Consagrado há décadas como um grande nome da revolução cognitiva, Jerome Bruner nunca deixou de ser pioneiro na definição e abertura de novas frentes de pesquisa. Um legado vasto e belo, ao qual devemos retornar, sempre.
NOTAS:
[1] Bruner, J. The Culture of Education. Cambridge: Harvard, 1996, p.11.
[2]Bruner,j; Goodnow, J e Austin, G.A.(Eds) A Study of Thinking. New Brusnwick: Transaction Pub., 1956.
[3] Idem, p. XV.
[4] As primeiras edições em inglês são de 1960 e 1966..
[5] O Processo de Educação, 8ª Ed. 1987, p.31.
[6] Bruner, J. Savoir-Faire, Savoir-Dire. Paris, PUF, 1983, p.16.
[7] Idem, p.210.
[8] The Culture of Education, p.3.
[9] On Knowing:essays for the left hand. Cambridge: Harvard UP, 1962, p.73.
[10] The Culture of Education , p.147.
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