Aí está uma idéia que pode parecer estranha, diante do que a maioria de nós está acostumada a pensar: a Geografia é, ou poderia ser ou, melhor ainda, deveria ser a mais importante de todas as disciplinas escolares.
Essa é uma noção atípica porque, infelizmente, o ensino da Geografia na escola ainda é associado a duas idéias principais:
– A Geografia é uma matéria que leva ao extremo o recurso à “decoreba”. Nós fomos educados assim e, apesar de todas as mudanças, ainda podemos dizer que para tirar boas notas em Geografia, em pleno século XXI, o mais importante continua sendo ter uma boa memória.
– A Geografia é uma matéria que não reprova quase nunca, mais fácil e menos decisiva do que Matemática ou Língua Portuguesa. A aula de Geografia é um bom momento para fazer um pouco mais de bagunça até mesmo porque, em geral, professores de Geografia são “mais bonzinhos”…
Nesse artigo, gostaria de tentar mudar um pouco a visão de quem pensa assim e dividir algumas idéias que fazem com que nós, geógrafos, tenhamos grande orgulho e prazer com nossa profissão.
Enfim, a visão da decoreba e da matéria menos séria é triste, porque a Geografia não é nada disso: ela é uma ciência que integra contribuições de todas os campos do saber e que deve ter uma função central na necessária renovação do ensino.
Por quê isso acontece? Em primeiro lugar, porque é a Geografia que garante um espaço específico para o tratamento das questões sociais e ecológicas dentro das escolas, permitindo que os problemas do mundo sejam discutidos nas salas de aula.
Quando os meios de comunicação mostram incessantemente imagens de terroristas agindo nos mais recônditos cantos do planeta, é possível que a escola ignore isso? E quando o clima do planeta dá sinais de estar sofrendo alterações perturbadoras, talvez por influência da atividade industrial humana, é aceitável deixar de discutir isso? É claro que não, a não ser que a escola desista de ter entre os seus objetivos o de ajudar a entender o mundo.
É por isso que um amigo que é geógrafo sempre diz que “um bom professor de Geografia vai para a sala de aula com um jornal e um globo terrestre”. Claro, pois tudo o que está acontecendo de importante no mundo pode servir como ponto de partida para o trabalho do professor de Geografia.
E no que deve consistir esse trabalho? Basicamente em mobilizar a curiosidade e as idéias que os alunos já têm sobre os temas debatidos e, a partir daí, conduzir atividades em que iremos localizar, mapear, comparar e analisar criticamente os fenômenos discutidos. É exatamente por isso que há muitas décadas já se afirma que, na escola, a Geografia é fundamental para levar alunas e alunos além da visão superficial e sensacionalista das manchetes dos jornais e da TV.
Então, a Geografia é importante porque, mesmo na escola mais tradicional, abre espaço para que os problemas reais do mundo sejam discutidos e aprofundados. Esse processo revela um outro aspecto importante da Geografia: ela pode englobar abordagens de várias outras matérias. Um bom trabalho de Geografia provoca a necessidade de pesquisar e discutir questões históricas e científicas, produzir textos de síntese, levantar dados numéricos e usar a matemática em um sem fim de tipos de análises. Ou seja, em um trabalho sério de Geografia, todas as disciplinas devem dar sua contribuição; todas as matérias podem “estar contidas” na Geografia. A Geografia, vejam só que chique, é multi e interdisciplinar!
Aliás não são apenas os geógrafos que afirmam isso. Um dos grandes pensadores da complexidade, da renovação da ciência e de seus paradigmas é o francês Edgar Morin. Ele reconhece que “o desenvolvimento das ciências da Terra e da Ecologia revitalizam a Geografia, ciência complexa por princípio, uma vez que abrange a física terrestre, a biosfera e as implantações humanas”[i]. Ou seja, uma Geografia que não seja multidisciplinar não merece esse nome.
Com todo esse potencial dói ver que, ainda, a Geografia escolar é muitas vezes associada a coisas como decorar o nome de rios e de capitais…
Talvez eu já tenha conseguido provocar alguma perturbação em sua concepção da Geografia e de seu papel na escola. Para concluir, afirmo uma convicção, que não é apenas minha, de que a Geografia deve ser cada vez mais explorada como a mais importante das disciplinas para atingirmos um duplo objetivo em nossas escolas. Esses objetivos podem parecer contraditórios mas, na verdade, são profundamente complementares:
– Pelo conhecimento do espaço local e pela comparação com outros lugares, ajudar cada um(a) a compreender melhor sua inserção territorial e cultural, o que contribui para a construção de uma identidade pessoal e comunitária mais rica. Conhecer cada vez mais e melhor seu lugar, sua cultura, as pessoas que vivem nos mesmos espaços que nós.
– Pelo tratamento global dos problemas, pela busca de características comuns e pela análise da distribuição e da evolução espacial dos fenômenos, pelo uso constante do globo e de mapas, conhecer cada vez mais e melhor o planeta em que vivemos. É a Geografia que possui a mais nobre das missões, na escola do século XXI: preparar, para além dos patriotismos e regionalismos estreitos, nossas crianças e adolescentes para o respeito às diferenças e para o que nós chamamos de cidadania planetária.
O francês Paul Claval, um grande geógrafo, encerra um de seus livros afirmando que “concebida dessa maneira a Geografia prepara os homens para serem cidadão do mundo. É nisso que acredito sinceramente”[ii]. Eu também…
Afinal de contas, o mundo é mesmo quase uma bola, estamos todos no mesmo barco redondo com sua atmosfera fantástica, o que acontece aqui sempre tem implicações acolá, e não podemos mais nos dar ao luxo de educar nossas crianças como se isso não fosse uma verdade fundamental… Precisamos da Geografia para nos conhecermos, para conhecermos nosso mundo respeitando sua diversidade, sua complexidade e para construirmos a cidadania planetária. Decorem isso…
[i] Edgar Morin. “A cabeça bem-feita”. São Paulo, Editora Cortez, 2003. Página 28. Sublinhado por nós.
[ii] Paul Claval. “La géographie comme genre de vie”. Paris, L’Harmattan, 1996. Página 136.