A escola fechada e a escola aberta – o paradoxo de uma velha revolução que ainda não aconteceu na prática…

Nesse artigo vamos falar sobre uma velha briga da Pedagogia, que acontece entre os defensores de uma escola completamente isolada do mundo e os que defendem uma escola aberta para ele.

Vejamos alguns aspectos positivos de cada uma dessas visões:

Para os defensores de uma visão mais ortodoxa ou “fechada”, a escola é uma instituição que se tornou necessária a devido a fatores como a invenção da linguagem escrita, a difusão da democracia e o desenvolvimento de sociedades cada vez mais complexas.

Em um mundo que, a partir do final do século XVIII, foi ficando cada vez mais complicado, não é mais possível que a aprendizagem se faça como nas sociedades “primitivas”, em que as crianças aprendiam as habilidades importantes em contexto: participando com os adultos de atividades como plantar, tecer, caçar, etc. De acordo com a visão “fechada”, precisamos afastar a criança da sociedade, criar um espaço especial e protegido para que ela possa aprender o que é importante, longe do mundo caótico e confuso.

Assim, a separação e o isolamento são importantes porque criam um espaço em que podemos atuar para fazer coisas como dividir as crianças e adolescentes em diferentes faixas etárias, e fazer com que sejam submetidos a um programa didático e curricular específico.

Um dos mais brilhantes defensores de uma escola fechada ao mundo foi o pedagogo francês Alain (1868-1951). Para ele, a separação total entre escola e mundo é o fundamento dessa instituição, e ele resume sua posição em uma fórmula que ficou famosa: “A escola é e deve ser separada da natureza”.[i]

Um pedagogo contemporâneo reafirma a importância da separação entre escola e mundo, que cria um espaço em que existe o direito de errar: “O direito ao erro é precisamente o que justifica a escola em seu isolamento em relação à vida social”.[ii]

Em resumo, graças à escola temos tempo para perder tempo, para pensar e para errar, e essa parece ser uma vantagem inegável quando sabemos que o trabalho infantil ainda é uma realidade em muitos lugares e que a sociedade de consumo volta cada vez mais suas poderosas baterias para a infância e para a adolescência. A escola cria para a juventude um espaço livre das pressões sociais imediatas.

O que alguém pode ter contra essa visão?

Existem duas correntes principais de contestação da visão tradicional da escola isolada do mundo. A primeira, mais radical, contesta a própria necessidade de existência da instituição “escola”; a segunda corrente de críticas defende um uso totalmente diferente do espaço de liberdade criado pela instituição, que continua sendo necessária.

Para os autores mais radicais, entre os quais o mais conhecido é o austríaco Ivan Illich (1926-2002), deveríamos pensar em uma “sociedade sem escolas”. Em um livro polêmico e ainda muito interessante, publicado pela primeira vez em 1971, ele defendeu a ideia de que a escola possui um enorme poder – o monopólio de dizer quem “sabe” ou “não sabe” -, que esse poder deve ser contestado e que o processo de educação deveria passar pela criação de redes de conhecimento e pelo incentivo a todas as formas informais de aprendizagem.

Sua crítica, que faz parte de um pensamento que se opõem a qualquer espécie de grande instituição corporativa, é muito influente até hoje, especialmente nos EUA, onde muitas crianças de classe média estão sendo educadas por suas famílias, sem passar por escolas.

Na verdade as idéias de Illich podem ser interessantes até para aqueles que, como a grande maioria de nós, acreditam na importância fundamental da escola e sabem como é utópico esperar que uma sociedade – especialmente se for pobre e dominada pela mídia consumista como é nosso caso – tenha forças para gerar  em grande escala processos educacionais como aqueles com que sonhava Illich.

Um outro grupo de críticos, sem querer o fim das escolas, fala sobre o isolamento excessivo criado por muros que separam completamente a instituição do mundo em volta. Esses críticos, utopicamente, sonham com uma rede de escolas diferente, e não com uma sociedade sem escolas…

Vejamos algumas idéias importantes desse grupo:

As primeira grande crítica é dirigida à excessiva artificialidade da escola, que não hesita em criar métodos, divisões, escalas de avaliação, etc. Dessa forma, acaba criando um mundo artificial que fabrica suas próprias “hierarquias de excelência” (termo empregado pelo pesquisador suiço Philippe Perrenoud ao analisar o funcionamento da avaliação escolar), sem muita relação com o mundo real, mas que acaba tendo uma influência determinante, muitas vezes decisiva, sobre a construção da imagem tanto dos que conseguem chegar ao topo dessa hierarquia quanto dos que não cumprem bem seu papel de alunos bons e disciplinados.

Outra grande linha de críticas é quanto ao conteúdo escolhido e à maneira como é ensinado. O grande erro da escola mais tradicional está em seus conteúdos, que não interessam à juventude, e em seus métodos de ensino, que são autoritários e repressivos demais.

Aliás, essa não é uma crítica recente e já por volta de 1580, Montaigne, um dos pioneiros das concepções “abertas”, reclamava: ”não cessam de nos gritar aos ouvidos, como se por meio de um funil, o que nos querem ensinar, e o nosso trabalho consiste em repetir”.[iii]

Para muitos críticos, a grande solução para uma escola excessivamente artificial e isolada, distante dos interesses de crianças e adolescentes, seria uma abertura maior para o mundo. Assim, poderíamos selecionar assuntos de interesse muito maior, e poderíamos orientar um trabalho educativo com uma participação muito mais ativa de alunas e alunos. Mas, para isso, o papel das fronteiras, dos muros da escola, precisa ser repensado…

Outra grande crítica é quanto à natureza dos processos de comunicação que acontecem dentro dos muros da escola fechada. Devemos fazer perguntas como: Por que, quase o tempo todo, a proibição de que alunos conversem entre si? Por que só podem falar com o professor e somente com a sua autorização? É assim que se pretende formar pessoas aptas a debater e a participar ativamente de uma democracia?

Esse argumentos são sensatos, e receberam uma de sua expressões mais claras nas idéias do filósofo e pedagogo norte americano John Dewey (1859-1952). Para ele, as escolas deveriam funcionar como pequenas comunidades, valorizando a comunicação, a busca de objetivos comuns e a criação de processos em que todos aprendessem com todos.

Podemos perceber que uma das grande ideias do movimento que ficou conhecido como Escola Nova é valorizar muito mais as interações sociais do que o faz a escola tradicional: interações da escola com o mundo e interações entre todos os membros da comunidade escolar.

Dizer que esse debate não é importante para a pedagogia do século XXI, ou que está superado, é correr o risco de cair no ridículo. Ridículo, aliás, a que se expôs o movimento brasileiro conhecido como Pedagogia Histórico Crítica que, apesar de louváveis intenções de democratização do ensino, representou um retrocesso, ao reforçar posições e práticas didáticas da escola fechada.

Como se vê, a briga entre as concepções abertas e fechadas da escola é muito interessante, e continua nos dias de hoje.

Paradoxalmente os vencedores dessa briga, na prática, são os perdedores da discussão no plano teórico, e vice-versa. Enquanto que quase todos os grandes nomes da história da teoria pedagógica defendem posições abertas, na prática a imensa maioria das escolas, de todos os níveis e lugares, sempre funcionou  e ainda funciona a partir de um isolamento quase total do mundo.

Por isso, por mais que se possam criticar as posições “abertas” (como o fez de forma imprecisa e injusta a corrente brasileira conhecida como pedagogia histórico-crítica[iv]) é preciso reconhecer que, na prática, essas posições jamais  chegaram a influenciar de maneira significativa o funcionamento das redes escolares em qualquer lugar do planeta, nem mesmo na América do Norte ou na Europa. Na maioria dos casos, as iniciativas “abertas” se concentraram em escolas pioneiras, e não se expandiram a não ser de forma completamente desvirtuada.

Como diz de forma conclusiva Philippe Perrenoud, “o paradoxo é que denunciam-se os estragos de uma revolução pedagógica que jamais aconteceu ao nível dos fatos”.[v]

Na prática, a Escola Nova praticamente não foi descoberta, ainda, em pleno século XXI…

[i] Traduzido de: Alain. Propos sur l’éducation, Paris,  PUF, 3a ed., 1995. Página 40.

[ii] Traduzido de: Bernard Rey. Les Compétences transversales en question. Paris, ESF, 2ª edição, 1998. Página 137. Já existe uma versão brasileira desse livro, publicada pela Editora Artes Médicas.

[iii] Montaigne, “Ensaios”’. RJ, Ediouro, 1977. Página 144.

[iv] De forma “imprecisa” porque reduz a riqueza e diversidade de idéias e de experiências pedagógicas de toda uma corrente a um suposto “espontaneísmo”; “injusta” porque transforma em simples “interesses de classe burgueses” o trabalho pioneiro de pessoas importantes e, na maioria dos casos, profundamente engajadas com a melhoria das condições sociais e com a democracia.

[v] Traduzido de: Philippe Perrenoud. Métier d’élève et sens du travail scolaire. Paris, ESF, 2a ed., 1995. Página 17.

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