Sobre Luca Rischbieter

Sócio-fundador da Casa Labirinto, geógrafo, com Mestrado em Educação pela Universidade de Paris V. Pesquisa a pedagogia dos labirintos lúdicos desde 2008. É palestrante e, desde 1995, consultor pedagógico da Positivo Informática.

Pequeno Reino – Artigo 4

A HISTÓRIA DO PEQUENO REINO – Texto complementar 4

 ESCOLA E DEMOCRACIA

Este artigo repete alguns dos argumentos apresentados na DISCUSSÃO 17, sobre as melhores formas de educar para a democracia.

A escola é uma das instituições que, historicamente, está associada a processos de democratização em todo o planeta. Países que se democratizam são países que aumentam o acesso à educação – em todos os níveis – para todas as camadas da população.

Mas, na verdade, as escolas podem e devem ter um papel muito mais ativo na formação para a democracia. Isso precisa acontecer no mundo inteiro, especialmente em países como o Brasil, que tem uma história marcada por injustiças e barbaridades como a escravidão e por governos autoritários que se julgam no direito até mesmo de prender e assassinar pessoas que pensam as coisas de forma diferente da sua.

É normal que nos esqueçamos, em períodos mais democráticos, de que o nosso país foi o último do planeta a abolir a escravidão e que vivemos longos e tenebrosos períodos de ditadura, o que aliás ajuda a explicar a excessiva passividade da imensa maioria de nós, quando se trata de exercer a cidadania e o direito de protestar contra a falta de ética de políticos e de governantes. Nossa democracia é jovem e precisa ser aprimorada, se quisermos que cresça e se torne cada vez mais robusta e “entranhada” na mentalidade de nossos(as) compatriotas de todas as idades.

Por isso é que, nessa discussão, eu acho que a primeira grande questão que a escola deve se fazer é:

SOMOS OU NÃO SOMOS A FAVOR DA DEMOCRACIA?

Em 2010 (ano de publicação deste artigo), sabemos que os governos de muitos países responderiam “não” a essa pergunta. O Irã e a China são dois exemplos pra lá de significativos disso. Felizmente, atualmente, em nosso país, governos e escolas respondem com um grande e sonoro “sim, queremos ensinar para a democracia”.

O que nos leva a próxima questão:

ESTAMOS ENSINANDO DEMOCRACIA BEM?

Formar para a democracia envolve bem mais do que simplesmente “dar aulas” sobre a importância da democracia, sua história, sobre o combate muitas vezes violento e trágico por ela.

Em 1933, quando o Brasil ainda não havia realizado suas primeiras eleições que tiveram uma participação razoável da população e foram consideradas limpas (o que aconteceu em 1945), Anísio Teixeira (1900 – 1971), um de nossos maiores educadores, publicava a primeira edição do livro Educação Progressiva: uma Introdução à Filosofia da Educação, com críticas à escola que merecem ser meditadas até hoje, e que vão ao centro do debate que propomos.

A principal crítica de Anísio Teixeira era contra a excessiva passividade imposta a alunos e alunas, nas aulas. Isso ensinava uma série de hábitos incompatíveis com a formação para a democracia. Veja o que ele dizia sobre os efeitos negativos de uma escola que “dá aulas” o tempo todo, utilizando o exemplo das aulas de matemática:

Ora, a escola tradicional nunca percebeu que, em uma lição de aritmética, podia estar ensinando as crianças a não terem coragem, a não serem sociais, a alimentarem complexos de inferioridade, etc., de que iriam sofrer por toda a vida.

Então vemos que a velha escola, onde as crianças iam para fazer aquilo que não queriam, com uma disciplina semi-militar, está profundamente inadequada não só para a sociedade presente, como para a própria concepção moderna da aprendizagem.[1]

A pergunta que podemos nos fazer é: será que ainda estamos na “velha escola” a que se referia Anísio Teixeira em 1933? Será que, em pleno século XXI, estamos fazendo algo mais do que “dar aulas” – quase o tempo todo, todos os anos, dias e horas – em nossas escolas?

O que nos leva a uma nova questão:

COMO ENSINAR DEMOCRACIA?

Já que dar aulas sobre democracia está longe de ser suficiente para ensiná-la, o que podemos fazer? A resposta de pedagogos como Anísio Teixeira e de psicólogos como Jean Piaget (1896-1980) a essa pergunta é de uma simplicidade espantosa:

A melhor maneira de aprender democracia é praticando democracia!

Aliás, nada mais sensato, não é mesmo? Vejamos algumas citações de Piaget:

Unicamente a vida social entre os próprios alunos, isto é, um auto-governo levado tão longe quanto possível e paralelo ao trabalho intelectual em comum, poderá levar a este duplo desenvolvimento de personalidades donas de si mesmas  e de seu respeito mútuo.[2]

Auto-governo? Uma escola governada por alunos e alunas? É isso mesmo que Piaget, admirador confesso de pedagogos revolucionários como Freinet e Makarenko, está dizendo:

O problema é saber o que vai preparar melhor a criança para seu futuro papel de cidadão. Será o hábito da disciplina exterior adquirido sob a influência do respeito unilateral e da coerção adulta, ou será o hábito da disciplina interior, do respeito mútuo e do auto-governo? [3]

A criança, quando não está como na escola condenada à guerra contra a autoridade, é capaz de disciplina e de vida democrática.[4]

Sempre me divirto relendo essas declarações de Piaget, que tantas pessoas e escolas que se pretendem “construtivistas” nem ao menos discutem.

Aliás, acho a visão de Piaget meio ingênua e muito radical. As experiências de escolas auto governadas são fascinantes, mas raras e difíceis de reproduzir em grande escala. Mas, por outro lado, também acho que essas afirmações apontam caminhos super fáceis de implementar para escolas que buscam um dia a dia cada vez mais democrático:

Se queremos formar para a democracia, devemos aproveitar, sempre que possível, inúmeras chances que aparecem para favorecer debates, trocas de pontos de vista, elaboração coletiva de regras, etc.

O mais importante, na perspectiva de uma escola que quer formar para a democracia,  é pensar em situações que possam contribuir para desenvolver a competência de interagir dialogicamente com os outros.

Isso pode acontecer tanto dentro das salas de aula –  na medida em que aumentamos as atividades realizadas em duplas e em pequenos grupos, em que usamos jogos, dramatizações, debates e julgamentos simulados, discussões sobre regras de convivência, etc. – quanto fora dela – através do envolvimento em campanhas de caráter cívico (como a luta por uma melhor sinalização do trânsito ou o apoio a uma instituição carente próxima à escola) e do incentivo à criação de grupos de interesse extra escolares (como grêmios de estudantes e clubes de alunos interessados em astronomia, em xadrez, etc. ).

Idéias como essas, incorporadas ao cotidiano de nossas escolas, ajudam a formar pessoas mais bem preparadas para a cidadania em uma democracia, ou seja, pessoas que sabem dialogar e tomar decisões em conjunto, sem recorrer ao autoritarismo.

E de quebra, como veremos em nosso último item, ajudam também a formar pessoas mais inteligentes:

EDUCAÇÃO PARA A DEMOCRACIA E DESENVOLVIMENTO INTELECTUAL

Ensinar para a democracia, de forma mais dialógica e ativa, pode contribuir também para o desenvolvimento intelectual de nossos(as) estudantes.

Em 1966, um especialista em Didática, inspirado por Piaget, afirmava essa idéia com clareza:

Podemos dizer que a criança que troca idéias com seus semelhantes e com o adulto é levada a organizar de maneira operatória seu próprio pensamento. Os contatos sociais da criança desempenham assim, papel de primeiríssima importância em seu desenvolvimento intelectual.[5]

Não é preciso ser construtivista ou piagetiano para concordar com essas idéias, um pouco de reflexão e de bom senso bastam. Outra piagetiana importante, Constance Kamii, também afirma que ambientes mais “democráticos”, ricos em experiências e desafios, são ideais para a inteligência infantil, e ela faz um alerta muito interessante:

Uma criança educada numa família autoritária tem muito menos oportunidades de desenvolver sua habilidade de raciocinar logicamente.[6]

O mesmo vale para as escolas: quanto mais autoritário o ambiente escolar, menos chances as crianças terão de desenvolver sua própria inteligência.

Ou seja, a medida que conseguirmos diminuir o monopólio da atividade de “dar aulas”, e que introduzirmos processos de ensino-aprendizagem mais diversificados e formas de interação cada vez mais dialógicas, estaremos contribuindo não apenas para a construção de um país mais democrático, mas também para a formação de novas gerações mais inteligentes.

Eu acho essas idéias tão sensatas que gostaria, de forma nada democrática, que todo mundo fosse obrigado a meditar sobre elas…


Nota:

[1]  Anísio Teixeira. Educação Progressiva. São Paulo: Melhoramentos, 4ª ed., 1953, página 49.

[2] Jean Piaget. Para onde vai a educação? Rio de Janeiro: José Olympio, 1996, página 63.

[3] Jean Piaget. O juízo moral na criança. São Paulo: Summus, 1994, página 270.

[4] Idem, página 270.

 

[5] Hans Aebli, Didática psicológica. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1974, página 70.

[6] Constance Kamii. A criança  e o número.Campinas: Papirus, 1984. Página. 47.

Pequeno Reino – Artigo 5

A HISTÓRIA DO PEQUENO REINO – Texto complementar 5

A paciência de Jó dos computadores

Nesse artigo você vai encontrar trechos inteiros que podem ser vistos na DISCUSSÃO 19. Mas o tratamento da questão do potencial dos softwares educativos é feito aqui de forma um pouco mais elaborada.

Existe uma grande diferença entre a atividade de um pesquisador acadêmico e a de um professor ou de um pedagogo: enquanto pesquisadores buscam análises detalhadas e certezas comprovadas, pedagogos não podem esperar que isso aconteça, o que os interessa são idéias fortes e aplicações práticas.

Estou defendendo neste artigo, escrito mais pela ótica do pedagogo que pela do pesquisador, uma idéia que pode ser resumida assim: apesar de sua grande variedade, todos os softwares educativos têm uma característica comum, que é sua infinita paciência em relação aos erros das crianças.

A conseqüência prática é que essa é uma propriedade que pode ser explorada para melhorar processos de aprendizagem específicos e ao mesmo tempo ajudar o desenvolvimento de uma auto-imagem mais confiante e positiva em nossas crianças e jovens.

Começamos com um exemplo que ilustra esse ponto de vista. A história foi contada há alguns anos por um professor que trabalhava, em Curitiba, em uma instituição de apoio psicopedagógico a alunos(as) de escolas públicas com “dificuldades de aprendizagem”. Nela, ele relata o uso que fez de um software que todos nós considerávamos de péssima qualidade, pois se limitava a apresentar “continhas” com frações em um contexto graficamente muito pobre e que não tinha relação nenhuma com o conteúdo do jogo:

Antes de usar o software ‘x’ com os alunos, eu achava este um péssimo produto, sem nenhuma criatividade, mecânico. Mas, como ele era o único jogo de computador disponível na área de Matemática, nós o experimentamos com um grupo de alunos ‘fracos’ e repetentes de 3.ª série, muito atrasados em Matemática. Os resultados me impressionaram. Isso porque, depois de muitos erros, eles foram selecionando níveis cada vez mais simples de desafios e chegaram a exercícios que até mesmo eles conseguiam resolver. Foi muito impressionante ver sua reação quando apareceu ‘½ + ½ =?’ na tela: todos começaram a dizer, excitados, ‘1, coloca 1!’ e, quando receberam a mensagem de ‘parabéns!’, seus rostos se iluminaram. Eles adoraram a interação proporcionada pelo software, que aplaudia os acertos e não reprimia os erros. Além disso, usamos a possibilidade de cadastrar novos desafios para oferecer problemas que eles começaram a resolver (os mesmos que não queriam fazer com lápis e papel). Os resultados foram ótimos, inclusive em relação à performance na escola, principalmente porque essas crianças ganharam confiança interagindo com o software. (Relato do professor Marco Aurélio Mikosz)

Os alunos mencionados aqui eram considerados “péssimos” e já viviam com a sina de serem vistos assim, dentro e fora da escola. O que existe de quase absurdo nessa história é que foi somente com um software de qualidade medíocre que esses alunos viveram suas primeiras experiências escolares de “acertar”. É essa experiência que parece ter sido decisiva na mudança que acabou levando, até mesmo, a grandes melhoras desses alunos em seu rendimento dentro da escola.

O exemplo ilustra uma hipótese que, mesmo que apresentada aqui de forma um pouco “crua”, é fruto de bastante reflexão e algo com que muitos(as) de nós devem concordar:

A imensa maioria das dificuldades de aprendizagem não se deve a “deficiências cognitivas”, mas à falta de autoconfiança de crianças e de adolescentes que se acostumaram a ouvir e a dizer “não sei”, “não posso”. Alunos(as) que internalizam essa visão negativa acabam nem se engajando em análises específicas, pois, diante de uma dificuldade, ficam como que paralisados(as) pela autocrítica e pela convicção de sua própria incompetência.

A escola não parece capaz, na maioria dos casos, de mudar essa situação (aliás, muito pelo contrário). Mas é preciso parar de culpar os professores por isso. Quem é ou foi professor sabe que é quase impossível para quem lida com grupos de20 a30 alunos concentrar seu trabalho nos alunos “mais fracos”, pois é preciso dar aulas para “a média”, para “a maioria” que consegue acompanhar o ritmo. “Atrasados” desde o começo, muitos alunos acabam passando seus anos de escola sendo cada vez mais marginalizados.

Devido à grande paciência dos computadores, interações com softwares educativos podem ser um novo elemento para nos ajudar a tentar mudar essa situação.

Mais um exemplo: crianças de ciclo 1 que têm dificuldade para ler podem se divertir e aprender muito com softwares e desafios concebidos para crianças em idade pré-escolar. Até mesmo um jogo simples como o da “forca” adquire características novas ao ser desenvolvido para computadores e é grandemente apreciado por crianças sem confiança para jogá-lo fora do computador.

Mas por que isso acontece? Essa é uma questão interessante e que precisa ser mais explorada e discutida, mas, aparentemente, a impessoalidade e a paciência infinita dos programas de computador — mesmo que eles jamais possam ter a sensibilidade de um bom educador — fazem com que até mesmo os erros sejam vistos de forma lúdica. O fato de receber o tempo todo reações positivas, mesmo em caso de erro, de uma tela de computador faz com que essas situações não sejam vivenciadas como “punição” ou “censura”, ao contrário do que pode acontecer quando a avaliação fica a cargo de alguém de carne e osso…

Muitos especialistas criticam os softwares simples e primários, como os de nossos exemplos, e defendem o uso apenas de materiais em que haja espaço para criação, autoria e comunicação. Pessoalmente, já tive a mesma visão e continuo a favor do desenvolvimento e do uso de softwares cada vez mais sofisticados — como as novas versões do Logo ou produtos como o Cabri Geômetra. Mas também defendo a idéia de que até mesmo os softwares mais simples e elementares podem trazer resultados surpreendentes e que eles não devem ser descartados de nosso “arsenal” de recursos didáticos, principalmente porque normalmente são mais acessíveis e baratos.

Com uma boa biblioteca de softwares, uma opção, quando encontramos alunos com dificuldades em alguma área específica, é procurar atividades, nessa mesma área, que sejam dirigidas a uma faixa de idade inferior à desses alunos.

Aliás, o mesmo princípio vale para todos(as) os(as) alunos(as), e, por exemplo, uma criança que gosta muito de Matemática pode explorar produtos que oferecem desafios matemáticos para níveis de estudo cada vez mais avançados, em vez de ser obrigada — como acontece hoje em dia — a seguir o mesmo ritmo de toda a classe, vendo exercícios que já sabe resolver.

Os exemplos ilustram a idéia de que um bom acervo de softwares educativos pode nos ajudar na implementação do que atualmente chamamos de uma “pedagogia diferenciada”, pois permite diversificar as possibilidades de atividades oferecidas a alunos e alunas e proporcionar desafios mais adequados para cada um(a).

Para concluir, é importante deixar muito claro que atualmente, do ponto de vista da pesquisa acadêmica, nós simplesmente não sabemos quase nada sobre o que está sendo discutido aqui, sobre as novas e diferentes concepções de “erro” e “acerto” que se desenvolvem e sobre o que nossas crianças podem tirar de suas interações com computadores e softwares, mesmo quando estes podem ser considerados de baixa qualidade e embasados em teorias de aprendizagem ultrapassadas.

Mas “não saber quase nada”, enquanto pesquisadores, não pode ser uma desculpa para deixarmos de explorar — pragmaticamente, no dia-a-dia da escola e da família — a possibilidade de que até mesmo o uso de softwares educativos extremamente simples possa produzir resultados surpreendentes. Não podemos ter a mesma paciência que têm os computadores e aguardar as certezas acadêmicas, pois temos urgência em ensinar de forma cada vez mais diversificada e melhor.

Este artigo se encerra, assim, com um duplo convite: aos pesquisadores, para que dêem mais atenção à natureza específica das interações criança—computador e não restrinjam suas análises apenas ao uso dos softwares mais sofisticados; e aos educadores, para que levem em conta a possibilidade de que, graças à sua “paciência de Jó”, os computadores associados aos softwares educativos sejam aliados poderosos não apenas para ensinar, mas para alcançarmos um dos objetivos mais importantes e básicos da educação: ajudar cada criança a construir uma auto-imagem positiva.


Pequeno Reino – Artigo 6

 A HISTÓRIA DO PEQUENO REINO – Texto complementar 6

OS NOVOS ARTEFATOS INFORMATIZADOS NAS MÃOS DE CADA APRENDIZ E AS CHANCES DE UMA ESCOLA, FINALMENTE, MAIS LEGAL.

A leitura dessa artigo também é indicada como complemento à DISCUSSÃO 19. Mas enquanto o texto “Pequeno Reino – Artigo 5” fala sobre aspectos mais tradicionais do ensino escolar, esse artigo enfoca o tremendo potencial das novas tecnologias para desenvolvermos formas de “fazer escola” que, apesar de “revolucionárias”, são semelhantes ás propostas que eram feitas, nas primeiras décadas do século XX, por educadores como Anísio Teixeira e Cecília Meireles.

“Claro que eu sei pra que serve esse celular, pai: é pra tirar fotografias da gente!” (Maria Eduarda Cardoso, em 2008, aos 2  anos e 10 meses)

Em pleno século XXI, será que a escola já está usando os computadores com eficiência? Ou será que eles ainda correm o risco de ter o mesmo destino da televisão? Muitos de nós lembram-se de como, vista inicialmente como capaz de revolucionar nossas escolas, a TV acabou engolida pelo conservadorismo didático, e foi completamente “fagocitada” pela inércia de uma instituição que provou e continua comprovando sua incapacidade de transformar-se.

Essa é uma pergunta importante, pois vivemos um momento em que as tendências de evolução das tecnologias informatizadas abrem novas perspectivas para uma renovação da escola. Esse potencial existe porque a aceleração das inovações leva à multiplicação de novos artefatos informatizados mais potentes, completos e individualizados.

Dos laptops mais baratos aos telefones que fazem de tudo, surgem instrumentos, cada vez mais ao nosso alcance, que abrem novas perspectivas para a pesquisa, o transporte e consumo de bens culturais, a troca de mensagens e para atividades de autoria de todos os tipos. Resta saber a escola saberá explorar essas possibilidades…

A reflexão sobre o aproveitamento dos computadores e dos novos artefatos informatizados não pode ignorar a situação atual da escola. A universalização do ensino, as crises econômicas e ambientais, a influência crescente das mídias, a perda de autoridade dos pais estão entre os fatores que deram origem a uma crise de legitimidade da instituição. Em uma frase lapidar, Perrenoud resume bem o que acontece:

Pede-se à escola que instrua uma juventude cuja adesão ao projeto de escolarização não está mais garantida.[i]

A incorporação dos computadores à escola deve ser repensada a partir desse aumento de suas possibilidades de uso por cada aluno e aluna. Talvez, nos próximos anos, possamos comparar escolas em que os computadores continuarem em laboratórios a uma escola que, há algumas décadas atrás, tivesse apenas algumas dúzias de lápis e canetas, reunidos e utilizados em uma única sala, visitada periodicamente por cada uma das suas turmas…

Mas como explorar os novos artefatos? De maneira extremante genérica, podemos esboçar dois grandes objetivos que deveriam orientar a expansão do uso de novas tecnologias em nossas escolas:

– Individualização e multiplicação dos percursos de aprendizagem e dos meios de expressão:

Em um mundo no qual o acesso ilimitado aos mais diversos conteúdos se democratiza, selecionar, editar, reconhecer o que é ou não confiável torna-se fundamental. Não é mais apenas o professor que exerce a função de ensinar e, nas escolas, cada estudante tem espaço para dividir seus conhecimentos, suas produções e suas preferências com os outros. Os artefatos informatizados somam-se a objetos como canetas, pincéis, fantasias e instrumentos musicais, para compor um conjunto de recursos que são empregados nas mais diversas situações envolvendo tanto a expressão artística quanto a pesquisa, o debate e a (re)interpretação dos eventos do mundo.

– Interações e abertura de novos horizontes, em todas as escolas e escalas:

Dos processos internos a cada turma e a cada escola – que deve funcionar como uma comunidade em miniatura – às interações com a comunidade, com outras escolas e com outros lugares, uma escola deve ser um ambiente dinâmico em íntima conexão com a região e a comunidade, como já pedia, em 1932, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. E, de fato, os computadores permitem dar uma nova dimensão às idéias de toda a tradição escolanovista – jamais colocadas em prática em escala significativa, é importante lembrar.[ii] O seu aproveitamento viabiliza a abertura de novos horizontes, pesquisas e diálogos com qualquer lugar, e facilita uma formação que busca, também, a construção da cidadania planetária.

Com a ajuda dos computadores e das novas levas de artefatos que surgirão nos próximos anos, será mais fácil criarmos uma rede escolar mais legal – que abrirá cada vez mais espaço para a interação e o imprevisto, para atividades de pesquisa, autoria, para processos de auto-aprendizagem e auto-avaliação. Portanto, em melhores condições de recuperar uma legitimidade e uma relevância que vêm sendo erodidas pelas transformações da sociedade – somadas ao imobilismo de uma instituição que tem grandes dificuldades para repensar suas formas convencionais de se organizar, de ensinar e de avaliar.


Notas:

[i]  Philippe Perrenoud. Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999, página 15.

[ii] Como diz de forma conclusiva Perrenoud: O paradoxo é que denunciam-se os estragos de uma revolução pedagógica que jamais aconteceu ao nível dos fatos. Traduzido de: Philippe Perrenoud. Métier d’élève et sens du travail scolaire. Paris, ESF, 2a ed., 1995. página 17.