“O fígado do Sr. Silva” – Um conto de ficção científica

Introdução, em junho de 2017: Esse pequeno conto de ficção científica foi escrito em 2004, como um texto de apoio ao projeto “Genética, clonagem e outros bichos”, desenvolvido pela Central de Projetos do Portal Educacional – www.educacional.com.br. Sua função, dentro do espírito da ficção científica, era, e ainda é, provocar reflexão sobre o presente e o futuro não apenas das tecnologias, mas de nossa sociedade

O FÍGADO DO SR. SILVA

A porta da casa não bateu  – afinal de contas estamos em 2074, e as portas das casas da classe média fecham automática e suavemente, sempre – mas dava para perceber que o Sr. Silva não estava feliz:

  • Maria, desligue esse holograma maldito! Você e essas suas nowelas…
  • Mas que bicho clonado te mordeu, homem?
  • Estive recebendo no meu IPJCK-pós 28.2 – tipo 3.b  as nossas contas.
  • O pessoal do meu weboffice já está usando o modelo 28.3, você precisa ver que graça…
  • Não mude de assunto! O que significa essa fortuna que você gastou, de novo, com terapia genética?!?
  • Ora, querido. Você não percebeu que eu estou mais magrinha? E os meus seios?
  • Mas gastar 18.000 Irreais com isso!
  • Mas você quer o quê? Que eu vá fazer uma pré-histórica lipoaspiração em uma clínica de periferia?!? Que eu use implantes de silicone?!?

O Sr. Silva suspirou, mas logo voltou a falar, irritado:

  • E que história é essa de dar a entrada em um novo fígado?
  • Mas, Silva, você sabe que vai precisar de um fígado… os seus exames, o médico já disse, essa sua cirrose, essa coisa de tomar cerveja, misturada com aquela falha no processo de seleção cromossômica quando você foi concebido…

E de fato, dava perceber que, além de vermelho de raiva, Silva estava meio amarelado.

  • Mas, mulher, você sabe quanto está custando clonar células-tronco? O seguro não cobre, isso é só para os ricaços!
  • Mas você olhou bem o preço? Eu não estava pensando em células-tronco… Uma webamiga me disse que, bem…
  • O quê? Não me diga que você andou conversando com uma fazenda de clonagem? Eu é que não quero um fígado de porco!!
  • Não era bem em porcos que eu estava pensando, querido. Eu sei como todo o tratamento imunológico custa muito caro.
  • Mas, então… Não! Não me diga que…
  • Sim, Silva, fazendas clandestinas de embriões humanos no interior do país… A Arlete me passou uns links…
  • Não me diga isso! A gente não pode fazer isso, é ilegal. São embriões e até bebês de famílias hiper carentes sendo usados pra cultivar órgãos. Não, não e não! Mesmo nos dias de hoje, tem que haver um limite para tudo!
  • Mas essas fazendas existem de qualquer jeito. Muita gente está comprando órgãos com eles, até o pessoal da Europa.
  • Maria, eu sei que você se preocupa comigo, mas isso eu não vou admitir! Além do quê, a gente pode acabar preso, isso sim…
  • Mas, querido, eu achei que os nossos nanochips de poupança poderiam ser bem usados…
  • Nós já falamos sobre isso. Essas economias nós vamos gastar com a terapia genética preventiva do Silvinha. Aliás onde está ele?
  • Na casa de hologames.
  • Vamos precisar dar um jeito nisso. Enfim, o que interessa é que o fígado dele seja geneticamente tratado, é para isso que devem servir nossos créditos de poupança.
  • Mas e você, meu bem? O que vai acontecer quando…

Maria começou a chorar, Silva abraçou-a carinhosamente.

  • Venha, meu amor, está tudo bem, vamos ver holotelevisão.

Era hora da propaganda, e a sala dos Silva encheu-se de imagens em três dimensões, cheiros e sons agradáveis. Mulheres lindas despejavam nos copos de homens pós-sarados um espesso líquido amarelo com um maravilhoso e espumante colarinho alvo. O Sr. Silva, já mais calmo, e salivando, falou para as paredes da casa:

  • Hoje eu até que demorei pra começar… Cadê minha cerveja? Vamos lá!

A casa obedeceu, Silva pegou o copo, sorriu, deu um grande gole, Maria suspirou e, logo, a nowela recomeçou…