A2 – Perigo: coelho pronto para colorir!

A HISTÓRIA DO PEQUENO REINO – Texto complementar 2

PERIGO: COELHO PRONTO PARA COLORIR!

Este artigo, sugerido também como leitura complementar à DISCUSSÃO 4, fala de ideias fundamentais para quem reflete sobre Educação Artística. Esse debate é feito a partir de um exemplo e de um alerta, que podem ser resumidos assim:

Atenção, educadoras e educadores: a cada ano, a aproximação da Páscoa traz consigo uma grande ameaça: um bando de coelhos prontos para colorir. Pior ainda: como todos os coelhos, esses também tendem a reproduzir-se numa velocidade espantosa. Antigamente isso acontecia com a ajuda de mimeógrafos; de uns tempos para cá, até das novas tecnologias… O perigo só aumentou, cuidado…

Agradecimento: O título do artigo é de autoria do sempre perspicaz Parau Branco, que captou a ideia. 🙂 

Ah, os desenhos prontos para colorir… Não há como escapar deles. Em jardins de infância, creches, nas escolas, nas livrarias, nos lares, em softwares, nas telas dos computadores, nos tablets e i-pads…

Você já pode estar se perguntando: “Mas o que é que esse sujeito tem contra os desenhos prontos para colorir? Eles não são bacanas? Qual é o problema?”.

Conheço pessoas que já me perguntaram isso, algumas delas até são artistas hoje, e me dizem que gostavam de desenhos prontos para colorir. Apesar de meu espanto com isso, e de uma aversão intuitiva às atividades de colorir desenhos prontos, preciso tentar me explicar de forma que até mesmo essas pessoas possam perceber o argumento. Espero conseguir isso nos próximos parágrafos. Vamos lá:

 Um grande arte educador e seu inimigo número 1:

 Quando, no final dos anos 1980, comecei a trabalhar com redes de creches públicas, especialmente em Curitiba e em cidades de sua região metropolitana, comecei também a pesquisar a literatura sobre educação e arte infantil. Entre as referências obrigatórias, encontrei um livro encantador, chamado A criança e sua arte, de um educador austríaco radicado nos EUA, Viktor Lowenfeld (1903–1960).

Logo no começo de seu livro, dirigido a pais de crianças e lançado em 1954, podemos perceber que Lowenfeld tem um verdadeiro pavor dos cadernos com desenhos prontos para colorir. Eles são seu grande inimigo, ao longo do livro. Por quê? Vamos acompanhar seu raciocínio, quando ele usa como exemplo outro grupo de animais perigosos, que são os cachorrinhos prontos para colorir.

Para começar, eu gostaria que você, por favor, pensasse em um grupo de cinco crianças: imagine que uma delas tem um cão grande; outra um pequeno cachorrinho; outra foi mordida por um cachorro na rua; outra acaba de perder seu cãozinho em um acidente; outra deseja muito ter um cão, mas seus pais se negam a atender seus pedidos. Pensou?

Segundo Lowenfeld, e não vejo como alguém possa discordar dele, cada uma dessas crianças tem experiências diferentes com cães. Se pedíssemos para que desenhassem cachorros, ou para fazer dramatizações em que imitam um cão, é muito provável que cada uma delas fizesse algo diferente.

Mas quando entregamos desenhos de cachorros para serem coloridos, toda essa riqueza experiencial deixa de encontrar espaço. Vamos acompanhar o argumento de Lowenfeld:

 Suponhamos que a primeira figura que a criança deve preencher com tinta seja a de um cão. Dessa forma, a criança, obrigada a seguir determinado contorno, acha-se impedida, por nós, de resolver criativamente suas próprias conexões.[i]

Não há espaço para a experiência e para a expressão própria de cada criança, em uma situação dessas. Prosseguindo com o argumento, Lowenfeld fala sobre o que acontece com crianças a quem oferecemos atividades de colorir desenhos de cães:

Suas relações com um cão podem ser de carinho, amizade, antipatia ou medo. E não lhe oferecemos a oportunidade de expressar essas ligações, o que aliviaria seus ímpetos de alegria, ódio ou temor. Nos cadernos de figuras para colorir não há lugar para expressar as próprias ansiedades (…). Nem sequer há lugar para as diferenças individuais que possam existir entre Maria e Virginia. Ao preencher os contornos, vemos que estão todos arregimentados num mesmo tipo de atividade, sem que existam meios de satisfazer as diferenças individuais.

Lowenfeld tinha uma grande paixão pelo desenho como atividade saudável para crianças, capaz de ajudá-la até mesmo a conhecer e a expressar seus sentimentos, e a trabalhar suas ansiedades e frustrações. Daí seu imenso desgosto com tudo que se perde quando pedimos a todas as crianças para colorir desenhos infantilizados. Mas isso é mesmo muito grave?

Joãozinho, naturalmente, desconhecendo todas essas implicações, e um tanto preguiçoso por natureza, diverte-se colorindo o cão; mas, ao mesmo tempo que o faz com seu creiom, ele sente que jamais poderá desenhar outro cão tão bonito quanto este. É possível que fique bastante orgulhoso, quando houver terminado seu trabalho, pois, na verdade, coloriu o animal.

 A conclusão, e o resultado (des)educativo disso é inevitável, segundo ele:

A próxima vez, na escola ou em outro lugar, que for convidado para desenhar alguma coisa, ele se lembrará do cachorro, no caderno para colorir. Compreendendo que não pode competir com aqueles desenhos, responderá com muita lógica: “Eu não posso desenhar”.

Há um certo tom exagerado no argumento, é verdade, mas me parece que isso é produto muito mais da impotência que Lowenfeld sentia diante do sucesso avassalador dos desenhos prontos para colorir, e do público a quem ele dirige o seu texto. Mesmo hoje, nenhum educador, e nenhum pai ou mãe, deveria ficar indiferente ao ler a conclusão desse grande professor e pesquisador da arte infantil:

 Uma criança, depois de condicionada à coloração de figuras, terá dificuldades em desfrutar da independência de criar. A sujeição que esses cadernos produzem é arrasadora. A experimentação e a pesquisa têm provado que mais da metade das crianças, expostas aos cadernos de colorir, perdeu sua criatividade e sua autonomia de expressão. Tornaram-se rígidas e dependentes.

Logo depois dessa argumentação, Lowenfeld apresenta um exemplo em três imagens, que ele empresta de um trabalho de pesquisa publicado por dois colegas seus. Em primeiro lugar, ele mostra o desenho de um pássaro, feito por uma criança, antes de lidar com desenhos prontos para colorir:[ii]

Em seguida, Lowenfeld nos mostra um exemplo típico de uma atividade como as que encontramos até hoje, lamentavelmente, em materiais didáticos voltados para o ensino da Matemática nos primeiros anos da escolaridade. Nesse exemplo, a criança era instada a copiar os pássaros e a colori-los com uma cor específica:

 A terceira imagem mostra a mesma criança desenhando pássaros, depois de realizar a atividade “matemática” (como se isso fosse matemática, não é, mas esse não é o espaço para enveredar por essa discussão). Vejamos o novo desenho da criança que desenhou aquele lindo pássaro:

E veja como Lowenfeld descreve essa terceira imagem:

 A criança que perdeu sua sensibilidade, após copiar cadernos para colorir.[iii]

Em outro livro, em que faz uma abordagem mais rigorosa sobre a criatividade infantil, Lowenfeld mostra a mesma sequência de três imagens e comenta, desolado:

Em algumas experiências conduzidas por Russel e Waugamam (1952), 63% das crianças que tinham trabalhado com livros de pássaros para colorir haviam perdido seu conceito original de pássaro e mudado seus desenhos, de modo a torná-los semelhantes ao estereótipo do compêndio. (…) Depois de colorir os pássaros do livro, a criança perdeu sua sensibilidade criadora e sua autoconfiança.[iv]

Mesmo que você seja apaixonado ou apaixonada por desenhos prontos para colorir, há de concordar comigo que a argumentação de Lowenfeld devia nos deixar “com a pulga atrás da orelha”.

Eu, na época, fiquei muito impressionado com o argumento e fui a campo preparado para o combate…

A magia de desenhar coelhos, em vez de só colori-los

Já nos primeiros meses de 1991, junto com colegas que atuavam no Projeto Araucária, da Universidade Federal do Paraná, fomos a uma reunião com coordenadoras de creches de uma das regiões administrativas de Curitiba.  A Páscoa se aproximava, e queríamos discutir sugestões para trabalhar com as crianças de nossas creches. Quando perguntei sobre atividades que elas planejavam desenvolver, todas as coordenadoras pedagógicas disseram que, sim, planejavam mimeografar e distribuir os famigerados coelhos prontos para colorir!

Depois de muita conversa, consegui fazer um trato, e algumas coordenadoras concordaram com nossa proposta:

Em vez de impor desenhos de coelhos prontos para colorir, sugerir que as crianças que quiserem desenhem o Coelho da Páscoa”.

Logo após a Páscoa de 1991, nos encontramos de novo. E o que eu vi me convenceu de vez de que desenhos prontos para colorir deveriam ser vistos como inimigos da Educação Infantil. Muitas pessoas queriam contar histórias, havia uma empolgação no ar e, todas estavam surpresas com a vontade de desenhar das crianças. Nunca me esqueci de uma das histórias que ouvi naquele dia:

Uma educadora de uma sala com crianças de 5 a 6 anos de idade contou que, após um tempo estipulado para desenhar o Coelho da Páscoa, começou a recolher os desenhos. Segundo ela, um menino nem percebeu sua aproximação, pois estava como que paralisado, olhando com ar intrigado para o seu desenho. Com grande sensibilidade, a educadora não o interrompeu. O desenho se apresentava da seguinte forma:

Então, segundo ela, depois de algum tempo, os olhos do menino se “acenderam”, como se ele tivesse acabado de ter uma grande ideia. Tomando um lápis, ele traçou algumas linhas, olhou satisfeitíssimo para sua obra e chamou a educadora, dizendo, “Pronto, acabei!”.

 Veja o desenho que foi entregue pela criança de 5 anos de idade que, antes disso, já havia passado por dois anos de coelhos prontos para colorir:

O que aconteceu? A explicação é simples e fascinante: já acostumada a colorir coelhos, a criança começou a desenhar seu próprio Coelho da Páscoa, aproveitando o espaço aberto para isso. Desenhou o coelho, depois desenhou vários ovos coloridos.

 Foi quando ela percebeu uma terrível contradição, que a fez ficar paralisada:

 “Como assim, um coelho que bota ovos?”…

 “Como resolver esse problema? Como sair dessa situação? Quem é que coloca ovos? … Ah!”

Essa parece uma descrição razoável dos processos de raciocínio que fizeram que o desenho, que parecia incompleto, ficasse “pronto” após a colocação de duas patas de galinha no coelho. Afinal de contas, as galinhas colocam ovos…

 Não é interessante? Uma situação que mobiliza os conhecimentos, a imaginação e a criatividade da criança. Quantas situações dessas deixam de existir, a cada ano, com a invasão dos coelhos prontos para colorir?

Mesmo se existem argumentos a favor dos desenhos para colorir, que podem trazer para algumas crianças uma sensação de segurança e a percepção de limites claros além dos quais não se deve ir, o fato é que eles fizeram e continuam a fazer um verdadeiro estrago, se estamos preocupados em desenvolver a criatividade infantil. Hoje em dia sabemos que existem até mesmo pesquisas que mostraram efeitos positivos de desenhos prontos para colorir sobre as produções de algumas crianças, mas a idéia geral de Viktor Lowenfeld e a conclusão tirada das pesquisas de que ele dispunha ainda continua válida e merece ser repetida: desenhos prontos para colorir são uma dieta terrível para nossas crianças, nos lares e nas salas de aula.

Uma ideia para ser completada, jamais esquecida

 Lowenfeld já se espantava, antes de 1950, ao ver os desenhos para colorir aparecendo ao longo de todo o ano letivo.  Podemos perfeitamente adaptar seu raciocínio ao nosso país, em pleno século XXI:

De maneira bastante surpreendente, ainda encontramos folhas mimeografadas que se entregam aos jovens para colorir a silhueta de George Washington, o contorno do peru do Dia de Ação de Graças, do coelho da Páscoa ou mesmo de uma árvore de Natal.[v]

Espero que, a essas alturas, você perceba um pouco melhor porque um arte educador como Viktor Lowenfeld revoltava-se contra os desenhos prontos para colorir. Arte educadores sabem que, de umas décadas para cá, muitas propostas vieram enriquecer nossas concepções sobre a arte, seu papel e sobre formas de abordá-la com nossas crianças.  Por exemplo, no Brasil o nome de Ana Mae Barbosa está associado desde os anos 1980 à proposta de enriquecer a Educação Artística através do contato com obras de arte de qualidade e do incentivo à sua análise e reinterpretação criativa. [vi]

As novas contribuições devem ser integradas à nossa reflexão sobre arte educação, mas eu continuo achando que, apesar de até estar “na moda” há alguns anos dizer que Viktor Lowenfeld “está superado”, ainda é ele que diz de forma mais clara algumas coisas básicas que não deveriamos jamais esquecer, e parece que esquecemos…

 Encerrando com a ajuda um gênio

 Para concluir, gostaria de propor uma reflexão sobre uma anedota, uma história que é contada a respeito do genial pintor espanhol Pablo Picasso (1881–1973).

Diz a lenda que ele estava um dia sentado numa calçada de Paris, pintando, quando uma senhora se aproximou, segurando o filho pequeno pela mão. Ela parou e durante algum tempo ficou observando o trabalho do pintor. A uma certa altura, depois de fazer muitas caretas, não se conteve e disse, em alto e bom tom:

 – O Sr. me desculpe, mas isso aí até o meu filho faz!

 E Picasso teria respondido, na hora:

 –  Ele sim, a senhora não!

Essa anedota é apócrifa, ou seja, não sabemos se ela é verdadeira ou não, mas sabemos com certeza que Picasso disse:

 – Levei a vida toda para aprender a desenhar como uma criança…

Essa história vem reforçar a idéia defendida aqui: se queremos desenvolver a expressão e a criatividade, é preciso incentivar o modo de expressão próprio de cada criança, e não sufocá-lo com um verdadeiro jardim zoológico de desenhos prontos para colorir…

Encerro meu argumento lembrando alguns dos grandes riscos a que nossas crianças são expostas, todos os anos, a medida que se aproxima a Páscoa: o incentivo ao consumismo, o excesso de chocolate e os mais do que indigestos, e perigosos, coelhos prontos para colorir…

Notas:

[i] Essa e as próximas citações são de: Viktor Lowenfeld. A criança e sua arte. São Paulo: Mestre Jou, 1977, páginas 23 e 24.

[ii] As três imagens apresentadas são retiradas da página 25 do livro A criança e sua arte. Não consegui localizar nenhum representante da Editora Mestre Jou, que não está mais em atividade, para solicitar a liberação para uso das três imagens. Deixo aqui as referèncias que consegui obter sobre a fonte em que Viktor Lowenfeld foi buscá-las: Irene Russel e Blanche Wauganam, em: “Research Bulletin of Eastern Arts Associaton”, vol. 3, No 1, 1952.

[iii]Em: A criança e sua arte, página 24.

[iv] Viktor Lowenfeld e W. Lambert  Britain. Desenvolvimento da capacidade criadora. São Paulo: Mestre Jou, 1977, páginas 69 e 70.

[v] Idem, página 69.

[vi] Ana Mae Barbosa.  A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 1991.