A HISTÓRIA DO PEQUENO REINO – Texto complementar 3
O QUE FAZER COM OS ERROS INFANTIS ou: NADA PODE SER MAIS ERRADO DO QUE DIZER QUE O DESENHO DE UMA CRIANÇA ESTÁ ERRADO!
Este artigo é indicado, juntamente com o artigo anterior, como complemento à leitura da DISCUSSÃO 4, e discute mais uma ideia básica e fundamental para quem busca desenvolver as capacidades de expressão de suas crianças.
Começo essa conversa com o relato feito já há alguns anos por uma amiga que, como parte de seu processo de preparação para ser professora de uma escola particular voltada para crianças de famílias abastadas ,estava observando uma sala de Educação Infantil da escola. Ela me relatou a seguinte cena:
Em uma sala de Jardim II, as crianças desenham, sobre um tema escolhido pela professora. Um menino de 5 anos termina seu desenho e o entrega para a professora, com ar satisfeito.A professora olha o desenho, pega uma borracha, apaga uma parte do desenho e diz:
– Aqui está errado, desenhe de novo!
A primeira reação que essa historinha provocou em mim, e em várias outras pessoas a quem a relatei, foi de indignação. Os comentários, em rodas de conversa informais, são do gênero “mas que burrice!”, ou até mais agressivos que isso. Parece fácil identificar-se com a criança e com a decepção que ela pode ter sentido.
Passada essa primeira reação, tento refletir e justificar esse sentimento de indigna- ção. Outra frase dita sob o jugo da emoção me coloca na pista:
“Mas que ideia demente: corrigir o desenho de uma criança de 5 anos!”
É aí que começa o grande equívoco de nossa professora: permitir-se tratar o desenho de uma criança de 5 anos como se fosse um exercício de matemática.
Em seguida, o modo de “tratamento do erro” também é equivocado.
“Mas que atitude absurda: apagar o desenho de uma criança de 5 anos!”
Quando uma professora de Ensino Fundamental corrige um exercício de matemática feito por um aluno, não é recomendável o procedimento de apagar o que está errado e mandar fazer de novo… O que se deve buscar é envolver a criança em uma análise do que ela fez, discutir, incentivar o raciocínio e a auto correção…
Professoras que têm por hábito reagir às produções infantis com “está certo” ou “está errado” precisam rever seus procedimentos. Constance Kamii nos explica uma razão fundamental para não encararmos nem mesmo o ensino da Matemática dessa forma:
Quando ensinamos número e aritmética como se nós adultos fôssemos a única fonte válida de retroalimentação, sem querer ensinamos também que a verdade só pode sair de nós. Então a criança aprende a ler no rosto do professor sinais de aprovação e de desaprovação. Tal instrução reforça a heteronomia da criança e resulta numa aprendizagem que se conforma com a autoridade do adulto. Não é dessa forma que as crianças desenvolverão o conhecimento do número, a autonomia, ou a confiança em sua habilidade matemática.[i]
Se esse tipo de reação às produções de alunos já é desaconselhável para ensinar Matemática, o que dizer então de alguém que pretende utilizá-lo ao analisar as atividades de desenho propostas para a Educação Infantil? O que pensar da mesma atitude em uma área em que não há nenhum consenso em torno da critérios de “certo” ou “errado” e em que deve prevalecer o incentivo ao desenvolvimento da personalidade e dos modos próprios de expressar-se de cada um?
“Até a concepção de erro dela está errada!”
Mesmo se em muitos casos as práticas dentro das salas de aula ainda não se modificaram muito, mudaram definitivamente as nossas concepções sobre o erro e como ele deve ser tratado no processo de ensino escolar. Hoje o foco é cada vez mais, como afirma o espanhol Saturnino de la Torre, em:
descobrir o potencial construtivo, didático e criativo do erro, diante de seu habitual caráter sancionador.[ii]
Aliás, seria importante que a professora entendesse que o conceito de erro simplesmente não tem seu lugar no trabalho com desenho e com outras formas de expressão artística. Não se deve falar em “certo” ou “errado”, e muito mais importante do que avaliar os desenhos infantis é garantir a chance a todos de experimentar e incentivar cada criança a buscar formas cada vez mais pessoais de expressão.
Na área da Matemática, uma boa sala é aquela em que todas as crianças dão a mesma resposta correta a um problema; na área da Educação Artística, o oposto é que deveria valer: quanto mais diferença houver entre o estilo de cada criança, quanto mais nos surpreendemos com a infinidade de caminhos e formas de representação, melhor estaremos fazendo o nosso trabalho educativo.
Outra abordagem crítica da atitude da professora pode ser feita a partir da reação de uma colega a quem contei o caso:
“Mas que absurdo! Será que ela não sabe que não é pra isso que serve desenhar, na Educação Infantil?”
Quando pedimos a uma criança que desenhe, podemos ter inúmeros objetivos, e parece haver entre os educadores um certo consenso sobre alguns deles: oferecer experiências positivas de contato com os diferentes materiais que podem ser usados para desenhar e escrever, incentivar a busca de caminhos próprios de expressão e a retomada criativa de experiências pessoais, e até favorecer o desenvolvimento da auto estima em atividades que não se prestam às formas tradicionais de avaliação escolar.
No nosso exemplo, aparentemente a atividade estava cumprindo bem essas funções, pois o menino estava muito satisfeito ao entregar o seu desenho, havia vivido uma experiência positiva de contato com esse modo de expressão.
Que tipo de reação da professora seria mais apropriada, no caso?
“Qualquer coisa, menos o que ela fez!”
No mínimo, olhar o desenho com carinho, se possível elogiá-lo, sugerir que a criança o assinasse, guardá-lo com cuidado, ou usá-lo em um mural da sala, ou devolvê-lo para a criança, para ser levado para casa ou guardado em alguma pasta sua…
Jamais, nesse contexto, a prioridade da professora deveria ser julgar o desenho em termos de certo ou errado. Muito menos apagar uma parte e devolvê-lo, invalidando o valor do esforço de expressão da criança.
Lembro-me de uma linda citação de Herbert Read, ao falar sobre arte e sobre os grandes artistas:
Poder-se-ia dizer muito simplesmente que o artista ao pintar uma paisagem (e tal se aplica a qualquer obra que o artista faça) não deseja descrever a aparência da paisagem e sim dizer-nos algo a respeito.[iii]
Se trocarmos a palavra “artista” por “criança” – e levarmos em conta que tanto a experiência da criança quanto a descoberta de suas possibilidades de expressão ainda estão pouco desenvolvidas – , podemos ter uma idéia de um aspecto central da concepção de arte infantil de muitos autores. Lembrar-se disso pode nos auxiliar na hora de darmos uma opinião, ou nos fazer pensar duas vezes antes de criticar uma obra que a criança vem nos mostrar…
A nossa professora do exemplo parece sofrer de uma doença da qual a Educação Artística já deveria ter nos libertado há décadas: a “síndrome do céu azul”, que leva a exigir desenhos realistas, em que a grama seja sempre verde, as proporções entre as pessoas mantidas, etc. Esse não é o espaço para discutir isso, mas pessoas que ainda pensam assim, em pleno século XXI, deveriam ser mantidas afastadas de nossas escolas e de nossas crianças…
“Mas e se a professora pediu um desenho específico, e a criança não desenhou como ela pediu?”
Parece claro que, na situação discutida, a professora tinha um objetivo preciso ao propor o desenho, e queria algo como uma representação “realista”. O mínimo que se esperava é que ela tivesse cuidado ao explicar o objetivo da atividade e, especialmente, ao analisar o desenho produzido pela criança e solicitar que ela o refizesse. Mesmo assim, essa ainda seria uma história bastante triste.
Ao pensar sobre esse caso, lembrei de ter observado algumas vezes, no trabalho com salas de Educação Infantil, desenhos de crianças de 4 ou 5 anos em que a professora fazia, com a famigerada caneta vermelha, o clássico símbolo de “certo” ou “meio certo!”. Talvez esse seja um consolo para a professora de nosso exemplo: ela não está sozinha em seu equívoco!
Seria preciso convidar essa professora a refletir sobre seu modo de atuar, levando-a inclusive a imaginar a situação sob o ponto de vista da criança que teve seu desenho apagado e recebeu um “faça de novo” como feedback.
Talvez um processo desses, acompanhado de um diálogo e de uma boa discussão sobre os fundamentos da Educação Artística, ajudasse-a a mudar seu comportamento. Mas talvez não, e parece-me que esse triste exemplo ilustra um processo que acontece em grande escala: uma contaminação terrível da Educação Infantil pelo espírito equivocado da escola julgada “séria”.
Minha impressão é que esse tipo de atitude tem uma explicação que é, acima de tudo, sociológica: é para se diferenciarem dos outros que muitas professoras recorrem a procedimentos que parecem “técnicos” e imitam sem critério modos de agir de séries mais avançadas. O uso completamente inapropriado de estratégias didáticas transpostas para um novo contexto é, na verdade, um recurso em sua tentativa de mostrar que “sabem mais” que educadoras menos qualificadas que atuam nos mesmos espaços. Ou, pelo contrário, é uma tentativa de educadoras com pouca qualificação para parecem mais competentes, ao fazerem algo que parece complicado….
Ora, cada vez mais eu tenho a convicção que o caminho para uma escola eficiente e mais feliz exige precisamente o contrário: que o Ensino Fundamental e até o Ensino Médio se deixem impregnar pelo espírito lúdico da boa Educação Infantil, que recebam de braços abertos o devaneio, a imaginação, o direito de passear ou, no sentido mais amplo da palavra, que reconheçam o direito de errar…
Será que eu estou certo? O que você acha? Será que eu tenho que apagar tudo?
Puxa, como eu queria ter sido educado em escolas com mais espaço para errar…
Esse artigo faz parte da proposta pedagógica “A História do Pequeno Reino”, de Luca Rischbieter, que pode ser acessada no endereço: www.lucapr.com.br
Notas:
[i] Constance Kamii. A criança e o número. Campinas: Papirus, 1984. Página 68.
[ii] Saturnino de la Torre. Aprender com os erros: o erro como estratégia de mudança. Porto Alegre: Artmed, 2007. Página 10.
[iii] Herbert Read O sentido da arte. São Paulo: Ibrasa, 1968. Página 112.