Vamos falar um pouco sobre as ideias de uma grande pedagoga que é quase desconhecida em nosso país. Trata-se de Sylvia Asthon-Warner (1908-1984), que ganhou fama devido ao seu trabalho com crianças nativas de seu país, a Nova Zelândia.
Veja um resumo do contexto em que ela teve uma idéia brilhante:
Estamos na Nova Zelândia, no outro lado do planeta, em 1938. Sylvia Ashton-Warner é uma professora que recebe a tarefa de ensinar crianças que vêm de tribos aborígenes a escrever em inglês. Os livros e cartilhas disponíveis para apoiar seu trabalho mostram ilustrações infantilizadas da vida de crianças na Inglaterra, país que colonizou a Nova Zelândia.
Sylvia Ashton-Warner decide não usar essas cartilhas. Para ela, embasar o ensino em imagens e textos ”bobos”, de outro lugar, serviria para desvalorizar ainda mais o mundo em que as crianças das tribos nativas da Nova Zelândia viviam.
Uma professora brasileira que chegasse a uma tribo indígena munida de cartilhas, com o dever de alfabetizar as crianças, viveria um drama pedagógico semelhante ao que Sylvia experimentou, drama para o qual ela encontrou uma solução didática genialmente simples, que pode ser resumida assim:
Para iniciar a alfabetização de forma eficiente, podemos criar rituais e rotinas em que escrevemos as palavras favoritas de cada criança.
Para ela, um dos motivos para escolher esse caminho é que o conteúdo, as palavras-chave usadas para alfabetizar, seria tirado do próprio mundo e das experiências das crianças nativas. Se você está pensando em Paulo Freire, agora, está coberto(a) de razão…
A partir dessa ideia, Sylvia criou uma rotina das “palavras favoritas” que pode ser resumida assim:
As crianças faziam uma fila e, na sua vez, cada criança tinha direito a escolher uma palavra qualquer para ser escrita. Qual palavra? Qualquer palavra? Sim, que podia ser o nome de um parente, de um bicho, inventada, qualquer palavra. Ou grupo de palavras, ou pequenas frases. Após uma pequena conversa em que o objetivo era deixar a criança à vontade, Sylvia redigia a sua “palavra favorita”.
A palavra escolhida pela criança era escrita por Sylvia em um grande retângulo de cartolina e entregue de presente para a criança.
Vejamos alguns exemplos, escolhidos em seu livro mais importante, em que Sylvia apresenta algumas das palavras pedidas por crianças de sua turma:
Penny: Papai Mamãe casa avião carro…
Rongo: amendoim bolo fantasma cama beijo meias…
Phillip: trem box caminhão ervilha rifle…
Phyllis: cerveja pudim ônibus querida beijo fantasma…
Em seguida, ela comenta:
As palavras, quando eu as imprimo em grandes cartões, enchem as crianças de sorrisos e de entusiasmo.[i]
Prosseguindo: cada criança tinha seu próprio “baú” ou envelope de palavras favoritas e, a cada nova rodada, tinha que ler as palavras que já estavam em seu arquivo, escritas nos dias anteriores. As palavras que não eram reconhecidas pela criança eram descartadas por Sylvia, e apenas as palavras reconhecidas voltavam para o envelope de palavras da criança.
Hoje nós podemos usar um computador para desenvolver uma rotina de “Palavras Favoritas”, usar recursos de edição para formatar e imprimir palavras. E criar no computador um arquivo para cada criança.
Voltemos ao passado, às origens dessa ideia que ainda tem um imenso futuro:
De forma complementar, Sylvia propunha uma série de desafios de cópia, reconhecimento de letras e invenção de histórias, a partir dessas palavras. Veja que belo exemplo, de um “jogo” que ela desenvolvia, e que também ilustra a busca de Sylvia por uma pedagogia interativa:
O que eu chamo de “ensinando Um para o Outro”: um segura o cartão com “meias” para o outro e diz: “O que é isso?” Se o outro não sabe, o primeiro conta para ele.[ii]
Não é bacana demais? A rotina das “Minhas Palavras Favoritas” é uma idéia simples, que tornou Sylvia Asthon-Warner uma das grandes pedagogas da história, apesar de ser quase desconhecida em nosso país.
E quanto aos resultados? Eles são ótimos, e não apenas com as crianças que foram alunas de Sylvia. O “Método das Palavras Favoritas” funciona sensacionalmente não apenas com aborígenes ou indígenas, mas com crianças de todas as raças, cores, culturas, classes sociais. Todas as experiências em que essa idéia foi experimentada com crianças de 3 a 8 anos mostraram resultados impressionantes. Lógico, pois as crianças aprendem com muito mais atenção a partir do momento em que “descobrem” que as palavras que mais as interessam podem ser escritas.
Mais do que qualquer método que trabalha com palavras pré definidas, essa rotina permite gerar exercícios e análises muito interessantes. Crianças que vivenciam rotinas escolares como a das “Palavras Favoritas” abordam outros textos escritos, como obras de literatura infantil, com curiosidade e confiança.
O parentesco entre as ideias e práticas de Sylvia Ashton-Warner com o “método” Paulo Freire é evidente e, assim como Sylvia valorizava o fato das palavras serem “vivas” para as crianças nativas da Nova Zelândia, o grande sucesso de Paulo Freire explica-se pelo fato de conseguir trabalhar, como diz um cientista social brasileiro, com homens para os quais as palavras têm vida porque dizem respeito ao seu trabalho, à sua dor, à sua fome.[iii]
John Holt (1923-1985), um grande educador norte americano que conhecia bem as ideias de Sylvia Ashton-Warner, resumiu assim o trabalho de Paulo Freire:
Seu método é uma espécie de versão adulta e politicamente radical do método que Sylvia Ashton-Warner descreveu nos livros Spinster (Solteirona), de ficção, e Teacher (Professor), sobre ensino.[iv]
Pessoalmente, eu adoraria ter sido “alfabetizado” por professoras que conhecessem as ideias de Sylvia Ashton-Warner, e acho que seu “método” deveria ser apresentado em nossas faculdades de pedagogia e em processos de qualificação de pessoas que recebem a nobre missão de “alfabetizar”.
E, concluindo, imagino a transformação que aconteceria se a grande maioria das crianças de nosso país vivenciasse inúmeras situações escolares inspiradas no Método das Palavras Favoritas.
Eu espero que, a medida que entramos pelo turbulento século XXI adentro, as ideias de Sylvia Ashton-Warner se tornem cada vez mais conhecidas entre nós. Ela é uma de minhas pedagogos favoritas!
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[i] Sylvia Ashton-Warner. Teacher. Nova Iorque: Simon & Schuster, 1986, p. 45.
[ii] Idem, p. 51.
[iii] Francisco C. Weffort, “Introdução”, em: Paulo Freire. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 7ª ed., 1977, p.7.
[iv] John Holt. Aprendendo o tempo todo. Campinas: Verus, 2006, p.23.