Jerome Bruner, o último gigante da psicologia

A educação não é uma ilha, mas parte do continente da cultura.[1]

Em 05 de junho de 2016 faleceu o último dos grandes nomes do “quarteto fantástico” (ao lado de Wallon, Piaget e Vigotski) da psicologia da aprendizagem, Jerome Seymour Bruner, norte americano nascido em Nova Iorque em 15 de outubro de 1915.

Não é nada simples resumir uma trajetória secular, marcada pela abertura à cultura e ao diálogo com todos os campos do conhecimento, que deixou sua marca em praticamente todas as etapas e debates importantes da psicologia. É o que tentarei fazer aqui, ousando dividir a vastíssima obra de Bruner – apresentada em uma série de livros compostos por ensaios brilhantes – em quatro etapas, ou campos, principais:

1) Revolução cognitiva.

O início da trajetória de Bruner tem no ano de 1956 um marco fundamental, quando ele co-edita A Study of Thinking[2], uma das obras precursoras da revolução cognitiva. As pesquisas e análises do livro buscam as raízes do pensamento conceitual, estudado em situações de laboratório, e foram uma reação ao comportamentalismo vigente à época.  Em um novo prefácio, de 1986, Bruner lembra que a insurreição original buscava nos livrar das correntes do behaviorismo anti-mentalista e recapturar a ideia funcionalista da mente operando não cegamente, mas com intencionalidade; mas observa que, com o avanço das ciências cognitivas, no lugar das correntes behavioristas, encontramos instalada uma nova espécie de corrente: a computacional[3], que ele julgava igualmente perigosa, por negar a intencionalidade, a colaboração, a experiência e a construção ativa de significado. Logo, Bruner passaria a outras linhas de pesquisa, e o desenvolvimento de sua psicologia cultural o levaria, cada vez mais, à pesquisa de aspectos da mente humana que podemos chamar de não racionais, envolvendo afetividade, interação e construção de narrativas.

2) Psicologia da aprendizagem escolar e reflexão sobre escola

​Para muitos de nós, no Brasil, o contato inicial com Bruner aconteceu através de dois livros voltados para a Pedagogia: O Processo de Educação e Por uma Nova Teoria da Aprendizagem[4].  Nestas obras encontramos um verdadeiro “norte” para pensar materiais e atividades didáticas, com destaque para a ideia do “currículo em espiral”, que é claramente expressada por Bruner: Partimos da hipótese de que qualquer assunto pode ser ensinado com eficiência, de alguma forma intelectualmente honesta, a qualquer criança, em qualquer idade.[5] Um grande desafio, que colocava em cheque o conceito de “maturidade”, de períodos antes dos quais seria inútil tentar ensinar.

Apesar de serem as obras de Bruner mais conhecidas entre nós, há nestes livros uma aceitação implícita da função da escola como um espaço de ensino. O próprio Bruner sabia disso e, no resto de sua obra, encontramos uma visão de escola que é muito mais rica. Para nós, da Pedagogia, Bruner é decisivo, também, pela visão potencial de escolas como espaços culturais ricos e instigadores, em que crianças e jovens se apropriam ativamente dos recursos e das oportunidades oferecidos pela cultura mais ampla, construindo sua identidade pessoal e coletiva, inventado as suas próprias narrativas. Uma visão semelhante à de Dewey, apresentada de forma muito mais sofisticada e rigorosa.

3) Pesquisas com bebês e aprendizagem da língua materna.

Principalmente na década de 70, Bruner se envolve em uma série de pesquisas sobre as competências dos bebês. Um tema percorre o conjunto das pesquisas: as relações entre o desenvolvimento mental e a capacidade de construir comportamentos intencionais.[6] Bruner torna-se o mais importante pioneiro a falar sobre a riqueza das interações entre bebês e suas mães, sobre a capacidade de ação em conjunto, sobre como é impossível conceber o desenvolvimento humano isolando o bebê do meio em que ele cresce. Essas pesquisas logo se estenderiam à aprendizagem da linguagem, que Bruner também irá revolucionar, ao mostrar como ela surge inserida em uma rede incrivelmente complexa de interações sociais, em que mães e bebês constroem uma série de pequenos rituais com distribuição de papéis. Um de seus exemplos favoritos eram os jogos de esconder-achar, em que o bebê vai tornando-se progressivamente mais ativo. Para ele, a linguagem é adquirida como instrumento de regulação da atividade em conjunto e da atenção dividida. Indiscutivelmente, sua estrutura reflete essas funções e sua aquisição é impregnada dela.[7] Ao levar em conta a imensa riqueza desse universo de interações, Bruner faz uma crítica definitiva às visões ineístas sobre como aprendemos a falar.

4) As narrativas como pilar da psicologia cultural

As últimas décadas de atividade são devotadas à reflexão sobre uma psicologia radicalmente cultural que, sem negar os avanços do conhecimento biológico, parte do princípio de que sem as ferramentas da cultura, o homem não é um “macaco nu”, mas uma abstração vazia.[8] Bruner – que em 1962 já afirmava que a arte é a forma mais avançada de comunicação[9]dedica-se cada vez mais ao que há de não lógico, de metafórico na atividade humana e, estudando textos tão diversos como os jogos de crianças, autobiografias ou decisões jurídicas, defende a importância das narrativas na construção de nossas identidades. Vivemos em um mar de histórias, e como os peixes (segundo o provérbio) serão os últimos a descobrir a água, temos nossas próprias dificuldades para entender como é navegar em histórias.[10]

Consagrado há décadas como um grande nome da revolução cognitiva, Jerome Bruner nunca deixou de ser pioneiro na definição e abertura de novas frentes de pesquisa. Um legado vasto e belo, ao qual devemos retornar, sempre.

NOTAS:

[1] Bruner, J. The Culture of Education. Cambridge: Harvard, 1996, p.11.

[2]Bruner,j; Goodnow, J e Austin, G.A.(Eds)  A Study of Thinking. New Brusnwick:  Transaction Pub., 1956.

[3] Idem, p. XV.

[4] As primeiras edições em inglês são de 1960 e 1966..

[5] O Processo de Educação, 8ª Ed. 1987, p.31.

[6] Bruner, J. Savoir-Faire, Savoir-Dire. Paris, PUF, 1983, p.16.

[7] Idem, p.210.

[8] The Culture of Education,  p.3.

[9] On Knowing:essays for the left hand.  Cambridge: Harvard UP, 1962, p.73.

[10] The Culture of Education , p.147.

O sadismo de José Bonifácio ou Por que o Brasil é um país violento?

Nos últimos anos, as teorias que defendem o determinismo biológico do desenvolvimento humano ganharam muita força, graças aos conhecimentos cada vez maiores sobre o funcionamento de nosso cérebro e sobre as bases genéticas de nossa existência.

A violência e o sadismo estão entre as características humanas que, segundo essa corrente, podem ser explicadas pela Biologia e pela Neurologia. Para alguns, a violência é uma característica inata e um dia será tão previsível quanto, por exemplo, o desenvolvimento de doenças genéticas.

Por outro lado, não são poucos os autores que afirmam que essas ideias são incompletas e que jamais poderemos compreender a violência ou qualquer fenômeno psicológico se ignorarmos a influência do meio cultural e social sobre a formação da personalidade.

Para ilustrar esse ponto de vista, vamos usar um exemplo encontrado em “Casa-Grande & Senzala”, de 1933, um dos maiores clássicos da sociologia brasileira. O autor, Gilberto Freyre (1900-1987), fala sobre os terríveis efeitos da escravidão sobre a formação dos brasileiros na época do Império. Ele discute o caso de José Bonifácio (1763-1838), tutor de D. Pedro I e um dos primeiros defensores da abolição da escravatura a ocupar uma posição de grande poder no Brasil Império.

Freyre cita um discurso abolicionista feito por Bonifácio em 1823, e pergunta-se: “José Bonifácio, ao escrever libelo tão forte contra a escravidão, não sabemos se teria consciência dos vícios de caráter por ele próprio adquiridos no contato dos escravos: seu estranho sadismo, por exemplo.”

Para exemplificar o “estranho sadismo” de José Bonifácio, Freyre conta que “revelou-o bem ao assistir por puro prazer, sem nenhuma obrigação, ao castigo patriarcal que a soldados portugueses mandou infligir de uma feita o imperador D. Pedro I no campo de Santana: cinquenta açoites em cada um. Castigo de senhor de engenho em negros ladrões (…). Alguns soldados terminaram deitados de bruços sobre o chão, vencidos pela dor da chibata. José Bonifácio, que assistiu a tudo por gosto, conservou-se no campo até o final da flagelação”.[1]

Podemos concordar com Freyre quando diz que o desejo de José Bonifácio de assistir até o fim ao castigo aplicado aos soldados mostra um certo sadismo da sua parte. E o sadismo e a violência estão entre as características que as teorias criticadas aqui atribuem à herança genética dos indivíduos. Se um sujeito é violento, é porque ele estava geneticamente predisposto a isso. Gilberto Freyre, grande sociólogo, nega essa redução do indivíduo a um átomo fechado ao mundo, e insiste na importância das relações sociais para a formação da personalidade: “Outras evidências poderiam juntar-se de vários traços, no caráter de José Bonifácio, que se podem atribuir à influência da escravidão.”

“Nada disso, José Bonifácio teria sido um sádico em qualquer época, estava escrito em seu programa genético.” Freyre rebate facilmente esse argumento: “Se destacamos José Bonifácio é para que se faça ideia da mesma influência sobre homens de menor porte e personalidade menos viril.” Se ele, que era contra a escravatura e defensor de valores humanistas, já era meio sádico, imaginem os outros…

Gilberto Freyre fala também sobre o sadismo e a violência na relação entre crianças da elite e escravas. Como exemplo, ele usa um trecho de Machado de Assis (1839-1908), em que o personagem Brás Cubas faz um relato “autobiográfico” de sua infância: “Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava-lhe mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – algumas vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito um – ‘ai, nhonhô’ – ao que eu retorquia: ‘Cala a boca, besta!’ (…) Meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.”[2]

A conclusão dessas revoltantes histórias de sadismo e de racismo é irrefutável: mesmo com um “equipamento genético” idêntico, um país em que existe a escravatura terá mais pessoas violentas e sádicas do que um país onde não há esse flagelo.

A desigualdade que marca as relações sociais leva a uma repetição contínua de situações como as que vimos nos dois exemplos, que simplesmente não poderiam ser corriqueiras em uma democracia, e isso afeta o desenvolvimento de cada pessoa. Para nós, herdeiros do injusto e violento país de José Bonifácio e Machado de Assis, fica claro o dever de lutar por relações sociais conduzidas cada vez mais sob o signo da igualdade e do respeito aos direitos humanos, para formarmos brasileiros cada vez menos sádicos e violentos…

Para concluir, é preciso perceber o quanto, mesmo estando na moda,  são ridículas e incompletas as teorias que defendem a exclusividade do “determinismo biológico” na explicação de nossas condutas. Não somos só genes e cérebros; somos também corpos/mentes imersos em atmosferas, interações, culturas, linguagens, estruturas de poder e heranças sociais…

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1. Todas as citações são do capítulo IV de Casa-Grande & Senzala: “O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro”.

2. Gilberto Freyre retirou esse exemplo do capítulo XI de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

A triste história das crianças lobo

O desenho animado “Mogli, o Menino Lobo”, de Walt Disney, é bastante conhecido. Inspirado no “Livro da Jângal”, de Rudyard Kipling, o desenho conta a história de uma criança que, ainda bebê, perde-se de sua família e é adotada e criada por lobos, no coração da selva da Índia. Na história original, Mogli cresce interagindo e conversando com os bichos e, quase adolescente, reintegra-se facilmente ao seu grupo humano antes de ser expulso como “bruxo”, devido ao seu poder sobre os bichos.

Kipling (1865-1936), que nasceu na Índia, inspirou-se em histórias contadas nesse país sobre crianças que se perdiam na selva e acabavam vivendo com os bichos. E, de fato, existem registros claros, especialmente na Índia e na Europa, de alguns casos de crianças “selvagens”. Elas se perderam muito jovens de suas famílias, que viviam à beira de florestas, e cresceram sem contato com os humanos, antes de serem encontradas e trazidas para a “civilização”.

Infelizmente, em todos os casos conhecidos, as coisas se passaram de forma muito diferente do que na criação genial e romântica de Kipling:

Uma das histórias mais bem documentadas envolvendo “crianças lobo” é a de duas meninas completamente selvagens, resgatadas por uma expedição que massacrou os lobos com quem elas viviam, perto de um vilarejo no norte da Índia, em 1920.

O comportamento das duas crianças causou espanto:

“Quando foram encontradas, as meninas não sabiam andar sobre os pés, mas se moviam rapidamente de quatro. É claro que não falavam, e seus rostos eram inexpressivos. Queriam apenas comer carne crua, tinham hábitos noturnos, repeliam o contato dos seres humanos e preferiam a companhia de cachorros e lobos”.[i]

Amala, a menina mais nova, parecia ter um ano e meio e morreu pouco menos de um ano depois. Kamala, a outra irmã, tinha mais de oito anos quando foi encontrada e sobreviveu por nove anos, morrendo em novembro de 1929.

A evolução de Kamala, registrada pelo casal de missionários que cuidava dela em um orfanato, foi significativa, porém limitada. Ela conseguiu aprender a caminhar só com as pernas  e mudar  seus hábitos alimentares,  aprendeu muitas  palavras  e  sabia usá-las, embora nunca tenha chegado a falar com fluência. Apesar dos progressos de Kamala, os resultados foram decepcionantes:

”A família do missionário anglicano que cuidou dela, bem como outras pessoas que a conheceram intimamente, nunca sentiu que fosse verdadeiramente humana”.[ii]

O processo de educação ao qual Kamala foi submetida pode ser extremamente criticado, do ponto de vista do que sabemos hoje, pois houve uma grande ênfase na imposição de hábitos “civilizados” e, apesar do carinho dos que cuidaram dela, nenhuma preocupação com os aspectos traumáticos que toda a experiência certamente tinha para ela.

Assim, ficamos sem saber até que ponto Kamala poderia ter evoluído, se tivesse passado por um processo mais terapêutico e menos didático de reintegração ao mundo. O mesmo pode ser dito em relação a outras crianças selvagens que ficaram famosas, como Victor de Aveyron, encontrado em 1798 na França e que o francês Jean Itard tentou educar de forma muito interessante, porém extremamente diretiva.[iii]

Como não temos mais notícias de crianças selvagens desde a década de 20, não podemos fazer novas experiências de reeducação, e temos que nos consolar com os poucos dados que a história nos oferece. Resta-nos a constatação de que, depois de anos de esforços educativos intensos, algumas delas chegaram a humanizar-se um pouco, mas, desprovidas por anos da riqueza das interações que levam as crianças ao domínio da linguagem e dos símbolos, jamais chegaram sequer perto de poder ser comparadas com crianças normalmente socializadas.

Para Lucien Malson, que escreveu em 1963 um belíssimo livro sobre as crianças selvagens, a conclusão é clara:

“Será preciso admitir que os homens não são homens fora do ambiente social, visto que aquilo que consideramos ser próprio deles, como o riso ou o sorriso, jamais ilumina o rosto das crianças isoladas”.[iv]

A triste e comovente história das crianças selvagens, que sobreviveram quase milagrosamente entre os bichos e penaram para alcançar apenas as mais básicas marcas de uma existência civilizada, deixa uma lição que não pode ser ignorada: sem o denso tecido de interações sociais do qual participa toda criança, simplesmente não há humanidade.

Um bebê sem outros humanos é algo tão impensável como peixes sem água, como uma planta sem terra nem sol. A psicologia, ciência dos indivíduos, só pode existir se reconhecer o paradoxo em sua base: sem os outros, não há indivíduo. Teorias que esquecem ou ignoram essa idéia básica deveriam ser relegadas às selvas do esquecimento…

Notas:

[i] Humberto Maturana e Francisco Varela. “A Árvore do Conhecimento”. Editora Psy, Campinas, 1995. Página 159.

[ii] Em “A Árvore do Conhecimento”, página 161.

[iii] Uma ótima discussão sobre Victor de Aveyron pode ser encontrada em: Luci B. Leite e Izabel Galvão (org.). “A Educação de um Selvagem”. Editora Cortez, São Paulo, 2000.

[iv]Traduzido de: Lucien Malson. “Les Enfants Sauvages”. Editora 10/18, Paris, 1964, página 55.

 

Artigo – Henri Wallon, psicólogo para o século XXI

HENRI WALLON E A PSICOLOGIA EMOCIONANTE

Neste artigo, publicado originalmente na edição de abril de 2011 da revista Direcional Educador – a quem agradecemos pela permissão em publicá-lo aqui – eu falo um pouco sobre as ideias de um dos grandes psicólogos. 

O francês Henri Wallon (1879 -1962) forma, ao lado de Piaget e de Vigotski, o trio de ouro da psicologia do desenvolvimento. Na minha opinião ele é mais do que isso: é o autor da teoria psicológica mais rigorosa e completa de todos os tempos, e suas idéias podem ampliar muito nossa visão sobre o ser humano e sobre a educação, em pleno século XXI.

Nesse artigo vou tentar justificar um pouco essa visão, mas de forma muito incompleta, porque Wallon é um autor muito complexo e profundo. Apesar de mais de duas décadas de convívio com suas idéias, ainda me espanto a cada nova leitura de seus textos.

O que há de tão importante na visão de desenvolvimento humano construída por Wallon?

Em primeiro lugar, na base de tudo, está a tremenda ênfase que ele dá ao papel das emoções no desenvolvimento das pessoas. Nenhuma outra teoria psicológica que se pretenda científica, ou seja, construída a partir da observação sistemática de bebês e de crianças, é tão “encarnada” no corpo e nos afetos de cada ser humano.

“SÂO TANTAS EMOÇÕES”

Tanto Piaget como Wallon dão uma importância primordial aos movimentos musculares na gênese da vida mental e, quando Piaget afirma que existe uma inteligência antes da linguagem, Wallon certamente concorda.

Mas, a partir daí, Piaget desenvolve uma teoria do “sujeito que aprende”, criando uma obra sensacional mas que, como ele mesmo afirmava, não era uma obra de psicólogo, e sim de alguém preocupado em responder a uma questão: “Como se constrói o conhecimento?”. Piaget constrói, no máximo, uma psicologia da inteligência.

Já Wallon, tomando o corpo como ponto de partida, constrói uma teoria que contempla a integralidade do desenvolvimento humano.

Segundo Émile Jalley, a descoberta genial de Wallon consiste em uma análise completa, nova para sua época, dos componentes funcionais da motricidade.[i]

Em um excelente livro sobre Wallon, a brasileira Izabel Galvão resume estes componentes da motricidade:

A musculatura possui duas funções: a função cinética, que regula o estiramento e o encurtamento das fibras musculares, e é responsável pelo movimento propriamente dito; e a função postural ou tônica, que regula a variação no grau de tensão (tônus) dos músculos.[ii]

Jalley nos ajuda a entender o significado da “função postural ou tônica”:

A motricidade apresenta também, no ser humano, uma função expressiva (proprio-efetiva, postural ou tônica), dirigida para o ser humano, e base da afetividade. Além disso, a aparição desta segunda função precede genéticamente a da primeira, fornecendo-lhe a verdadeira base.[iii]

Falar de emoção significa falar dessa função tônica, e vice versa. Como explica outro autor francês:

A emoção se traduz e se imprime na tonicidade muscular de forma imediata e indissociável. Todas as emoções, segundo Wallon, explicariam-se, na criança, pela maneira como o tônus se forma ou se conserva, sendo muito estreita a reciprocidade entre a sensibilidade orgânica e a atividade tônica dos músculos. O medo, por exemplo, traduz-se pela total desorganização das funções tônica e postural.[iv]

Não é uma visão interessante das coisas? E vai ficar ainda mais, pois vamos ver que as emoções, além de estarem na base do desenvolvimento de cada ser humano, também constituem o primeiro canal de comunicação com os outros.

AS EMOÇÕES E OS OUTROS.

René Zazzo (1910-1995), psicólogo brilhante, amigo e “discípulo” de Wallon, afirmava, coberto de razão:

É da natureza da emoção, é da natureza do organismo humano, ser social. No modelo de Wallon, o homem é um ser naturalmente social.[v]

Como as emoções ligam o bebê humano aos outros?

Na visão de Wallon, no início da vida o bebê possui apenas as emoções. E ele não possui nenhum poder sobre elas. Falta-lhe qualquer controle consciente e voluntário de seu corpo, de seus gestos e de sua função tônico postural. Nas palavras de Zazzo, que termina citando Wallon:

No recém-nascido entrelaçam-se sem poder ainda coordenar-se, nem ter qualquer eficácia, bruscas distensões musculares e reações tônicas, espasmos. É o período que Wallon designa como de impulsividade pura. “Incapaz de efetuar seja o que for por si mesmo, é manipulado por outrem, e é nos movimentos do outro que as suas primeiras atitudes tomam forma.”[vi]

Pedro da Silva Dantas resume a visão essencialmente interativa de desenvolvimento proposta por Wallon:

A emoção estabelece uma comunhão imediata dos indivíduos entre si, fora de toda relação intelectual; estabelece relações com o meio humano e constitui o fundamento da intersubjetividade.[vii]

Nas últimas décadas do século XX, novas pesquisas mostraram que, como resumiu John Bowlby, os seres humanos, desde a infância, são mais sensíveis às atitudes emocionais daqueles que os cercam do que a qualquer outra coisa.[viii] As pesquisas revelaram, por exemplo, que um bebê de 6 semanas de idade já reconhece a diferença entre uma mãe receptiva e uma mãe indiferente, e parece não gostar de se deparar com a última.[ix]

A incrível capacidade precoce dos bebês para perceber os outros torna ainda mais fascinante o papel das emoções, desde os primórdios da existência dos bebês. O risco, entre os pesquisadores atuais, é esquecer as emoções devido ao fascínio com as descobertas sobre a atividade cerebral e cognitiva dos bebês. Essa é uma falha grave e, em Wallon, psicólogos e neurologistas ainda podem encontrar as melhores pistas para enriquecer de forma rigorosa sua visão sobre a infância, e para abrir novos rumos para a pesquisa.

Em comum com Vigotski, Wallon achava inaceitável pensar o bebê de forma isolada. Para ele, o bebê começa a vida tendo uma sociabilidade muito íntima com o ambiente humano, visto que começa por depender estreitamente dele. Diante disso, o que ele precisa não é de um progresso, mas sim de uma retração da sociabilidade.[x]

Como o psicanalista Winnicott, Wallon achava que um bebê sozinho não existe, e sua visão é construída a partir dessa situação de dependência total de um bebê imerso em um meio em que adultos reagem às emoções que o agitam, e do seio das quais emerge, aos poucos, sua consciência de ser um “eu” diferente do meio em que as emoções o mergulham, e no qual ele começa a descobrir, também, os “outros”.

Espero ter apresentado uma introdução ao menos razoável ao espírito da teoria de Wallon. No espaço que me resta, gostaria de introduzir algumas idéias que podem aumentar a curiosidade pela obra desse cientista genial.

PITADAS DE WALLON:

A obra de Wallon é extremamente diversa e abre um sem fim de novas perspectivas para aqueles que mergulham nela. Existem aspectos da psicologia humana que Wallon aborda melhor do que qualquer outro psicólogo. Vejamos alguns exemplos:

* Emoções são contagiosas…

A emoção liga os bebês aos outros, e emoções são contagiosas.

É na teoria de Wallon que encontramos a melhor explicação para o que pode acontecer em uma sala da Educação Infantil quando, por exemplo, uma criança começa a bocejar, ou então a chorar. Quanto menor a idade das crianças, maiores as chances de observarmos fenômenos que Wallon chamaria de contágio emocional, e que fazem com que outras crianças também comecem a bocejar ou a chorar.

Essa idéia é importante para quem lida com grupos de crianças, claro, mas sabemos que, na verdade, qualquer um de nós, quando se deixa “dominar pelas emoções” pode acabar se confundindo com outras pessoas…

Para entender fenômenos coletivos envolvendo multidões de pessoas que festejam ou que cometem barbaridades, um bom lugar para começar é com Wallon e sua idéia de que, em qualquer idade, a influência das emoções pode fazer a vida mental regredir a estágios mais primitivos de desenvolvimento.  

Pense um pouco: você consegue se lembrar de uma ou mais situações em que se deixou levar pelas emoções? E, em caso afirmativo, você consegue perceber a regressão e a perda das fronteiras entre o “eu”  e os “outros” de que fala Wallon, ao descrever não apenas a primeira infância, mas o comportamento de adultos submergidos pelas emoções?

Aprender a controlar as próprias emoções e a agir com “temperança” era um objetivo educativo prioritário, na Grécia Antiga, e que tem voltado às manchetes com conceitos como o de “inteligência emocional”, que é de uma superficialidade espantosa, quando comparado ao rigor com que as emoções são tratadas na psicologia de Wallon, que nos oferece os mais sólidos fundamentos para pensar a educação de pessoas que se emocionam, ou seja, de cada um(a) de nós….

* O olhar do outro

As pesquisas das últimas décadas nos mostraram o quanto bebês humanos possuem competências para perceber e para interagir com os outros. Essas competências precoces para, por exemplo, notar a aproximação e a presença de pessoas, devem ser pensadas à luz das idéias de Wallon, que falava sobre uma forma de sensibilidade muito primitiva que, segundo ele, diz respeito ao despertar de atitudes relacionadas à aproximação ou à presença de outra pessoa.[xi]

Wallon comenta o fato de que sentir-se observada pode alterar todo o comportamento não apenas de uma criança, mas de qualquer pessoa:

Sob a insistência de um olhar, sob a impressão de ser o objeto da atenção de alguém, pode acontecer a qualquer um de perder a compostura. É a desordem atirada sobre o sistema de atitudes. O efeito produzido é, aliás, variado; e seria possível, sem dúvida, classificar os indivíduos segundo o tipo de desordem que eles apresentam em tais casos.[xii]

Todos nós somos sensíveis ao olhar dos outros, e boa parte de nossas existências consiste em fingir que não…

Para Wallon, uma criança pode se sentir extremamente desconfortável se, em vez de afastar-se, o adulto insiste em interagir com ela:

Os gritos veementes, a rigidez, a obstinação das atitudes aumentam a medida que a atenção de que a criança é objeto torna-se mais precisa, mais próxima e mais intensa. É um contrasenso cometido em excesso o de procurar reduzir por um suplemento de atenção o que é intolerância pela atenção de outro. Os aspectos que pode revestir essa intolerância são de três tipos: a simples oposição ou negativismo, a angústia, o medo e a cólera.[xiii]  

Nas últimas décadas temos falado muito, em pedagogia, sobre a importância de promover interações, e ainda há muito a ser feito no sentido de termos escolas mais interativas. Mas é fundamental lembrar que, em uma série de casos específicos, proporcionar privacidade e proteção contra o “olhar dos outros” pode ser importante para quem lida com crianças, jovens e adultos angustiados, assustados ou enfurecidos…

 * O corpo reprimido

Para Wallon, bebês que se emocionam, que ficam excitados, precisam de atividade. Usando como exemplo uma situação em que um adulto faz cócegas em um bebê, ele fala sobre a existência do que chama de uma lei muito primitiva de equivalência entre o grau de excitação e o tônus, que pode induzir uma atividade destinada a esgotá-la gradualmente, ou acumular-se em excesso até se traduzir em contraturas e em espasmos.[xiv]

Um bebê excitado precisa de atividade, e tende a manifestar tonicamente a excitação acumulada. Wallon fala de situações em que a atividade alegre transforma-se em contratura dolorida e finalmente em crise emocional.[xv]

O que nos leva a refletir sobre o que acontece com uma criança que é reprimida demais (ou seja, com praticamente todas as crianças) e aprende a inibir seus músculos voluntariamente. Nas palavras de André Lapierre – criador da Psicomotricidade Relacional – isso pode ser muito ruim, pois o excesso de controle “voluntário” abafa as expressões musculares “tônicas”:

Quanto mais as contrações dinâmicas (voluntárias) são numerosas e importantes, mais elas tendem a apagar as contrações tônicas, que são de intensidade menor, a menos que expressem uma carga agressiva.[xvi]

Essa são noções tremendamente interessantes que não vamos aprofundar aqui, mas que abrem caminhos para a reflexão, por exemplo,  sobre o que estamos fazendo com os corpos – e portanto com as emoções – de nossas crianças, em nossas escolas. A atividade corporal é uma necessidade primária da infância, o que acontece quando essa necessidade é ignorada, e exige-se a imobilidade de crianças que vivem em um mundo que, fora da escola, é cada vez mais excitante e turbulento?

* A emoção simbolizada

Wallon também fala sobre a importância da aprendizagem de modos “simbólicos” de expressão da emoção, que oferecem uma alternativa à simples expressão tônica da excitação acumulada pelo bebê. Mas, para isso, a criança precisa da capacidade de simbolizar, de imaginar.

Assim como Bruner e Vigotski, Wallon concebe a imaginação como nascendo no jogo simbólico da criança e sendo, inicialmente, prisioneira do movimento. A partir do momento em que o ser humano começa a brincar de faz de conta, um novo caminho para a expressão dos afetos se abre. Essa evolução pode culminar em formas extremamente elaboradas de expressão simbólica e de arte e, mesmo nesses estágios mais avançados, sua função de transformação das emoções permanece tendo importância primordial.

Wallon fala sobre a obra de Goethe, em um exemplo de grande profundidade:

Para Goethe, exprimir sua dor numa narrativa, num poema, equivalia a afastá-la de si, isto é, a suprimir as reações orgânicas que fazem senti-la intimamente. Na medida em que se torna possível narrar uma tristeza, ela deixa de ser visceral e puramente emocional.[xvii]

Quantas implicações tem uma idéia como essa, nas mais diversas áreas de educação e da terapia, não é mesmo?

CONCLUINDO

Ainda hoje, as idéias de Wallon abrem espaço para um diálogo com e entre os mais diversos campos da ciência. Sua leitura crítica de Freud (com quem suas idéias tem inúmeras afinidades), sua sólida formação como neurologista, o foco simultâneo no corpo e nos aspectos sócio culturais do desenvolvimento o tornam um autor fundamental para quem busca transcender fronteiras entre diferentes abordagens. Ler e estudar Wallon continua a ser uma atitude inteligente e emocionante!


NOTAS:

Todos os grifos nos textos citados são meus. Os textos em francês foram traduzidos por mim.

 [i] Émile Jalley “Introduction à la lecture de la Vie mentale”, em: Henri Wallon. La Vie mentale. Paris : Messidor, 1982, p. 26.

[ii] Izabel Galvão. Henri Wallon. Petrópolis: Vozes, 4ª ed., 1998, p. 69.

[iii] Émile Jalley. Idem, p.26.

[iv] Robert D. de Bousingen. La relaxation. Paris: PUF, 9ª ed., 1991, p. 17.

[v] René Zazzo. Henri Wallon. Lisboa: Vega, 1972, p. 26.

[vi] Idem, p. 43.

[vii] Pedro da Silva Dantas. Para conhecer Wallon. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 158.

[viii] John Bowlby. Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 15.

[ix] Margaret Donaldson. A mente humana. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 56.

[x] Henri Wallon. De l´acte a la pensée. Paris: Flammarion, 1970, p. 75, 76.

[xi] Henri Wallon. Les origines du caractère chez l’enfant. Paris: PUF, 8ª ed., 1983, p. 127, 128.

[xii] Idem, p. 128.

[xiii] Idem, p. 130.

[xiv] Idem, p. 114.

[xv] Idem, p. 114.

[xvi] André Lapierre e Bernard Aucouturier. Fantasmes corporels et pratique psychomotrice en éducation. Paris: Doin, 1982, p. 109, 110.

[xvii] Henri Wallon. Les origines du caractère chez l’enfant. Paris: PUF, 8ª ed., 1983, p. 91.