SÃO FRANCISCO E O NOVO PARADIGMA, OU: “E SE AS CRIANÇAS SOUBESSEM ALGO QUE NÓS JÁ ESQUECEMOS?”

Estamos em 04 de outubro de 2024, Dia de São Francisco, e lembrei-me de um artigo que escrevi em 1998.Localizei-o e dei uma leve  atualizada, aí está:

Logo no começo da Bíblia (Gênese, 1.28), depois da criação de Adão e Eva, Deus orienta-os:

Frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra.

Um dos cartoons favoritos entre os ecologistas mostra um homenzinho no topo de uma montanha, no meio da Terra poluída e abarrotada de gente; ele olha para cima e grita:

– Pronto Deus, e agora?

Já faz parte do senso comum, já se ensina nas escolas que os homens estão passando dos limites, e que o paradigma do “crescei e multiplicai-vos” está esgotado. A raça humana vive dentro da natureza e da atmosfera terrestres e, se não aprender um outro modo de agir em relação a ela, irá provocar uma catástrofe. A Natureza – principalmente as bactérias – poderá sobreviver, o homem não. Fica a pergunta, mais importante hoje do que quando adentramos o século XXI: e agora?

Em uma obra lançada em 1996, um importante cientista ocidental, Albert Jacquard (1925 – 2013), buscou inspiração em São Francisco para pensar na resposta. Jacquard, que foi por décadas o mais conhecido professor de Genética da França, lembra, no livro de seu espanto ao conhecer as ideias do mais bom astral dos santos:

Ora, esse personagem reputado sério pois que canonizado, pronunciava palavras aparentemente absurdas; falava de sua “pequena irmã água”. Que alargasse o número de seus parentes aos animais próximos podia, apesar de tudo, passar por razoável; mas incluir entre eles a água não podia ser senão uma imagem poética sem qualquer correspondência real.[i]

Jacquard, há 30 anos, já percebe que São Francisco tinha acertado na mosca:

Não é apenas a água que Francisco integra na sua família, mas todas as criaturas, os animais, o Sol, a Lua, o fogo, o vento”. Ao fazer isto, ele “exprime exatamente a visão dos astrofísicos modernos que descrevem os homens como “poeira de estrelas”.[ii]

Os cientistas derivam um imenso prazer da noção de que cada átomozinho nosso –  do Sol, Terra, Lua, meu, seu, de sua casa, seu carro – foi fabricado, cozinhado no coração de estrelas que já morreram há bilhões de anos.

Aos poucos, embora absurdamente devagar, essas e outras belas ideias nos dão uma nova visão do universo, como um lugar muito mais interessante, explosivo e hospitaleiro do que o universo frio e mecânico que nos mostraram na escola. Não é a toa que dois importantes livros lançados naquela época por cientistas respeitáveis, tinham o mesmo e revigorante título: Em Casa no Universo.[iii]

A renovação da ciência nos oferece novos e belos modelos em que o homem está integrado ao Universo e à Terra. Mas, talvez alguém pergunte: “tudo bem, mas como podemos ensinar estas coisas para as crianças?”.

A pergunta me faz pensar numa anedota sobre Picasso. Diz  a lenda que ele estava sentado numa calçada de Paris, pintando, quando uma senhora – segurando o filho pequeno pela mão – parou, fez uma careta e disse:

– O senhor me perdoe, mas isso daí  o meu filho faz!

Reza a lenda que Picasso teria respondido:

Ele, sim, a senhora, não…

Para Picasso, e não só pra ele, as crianças estão mais próximas de verdades que só artistas, místicos e poetas ainda percebem.

Alguns tipos de substâncias alucinógenas parecem ser capazes de produzir estados de mente parecidos. Assim, por exemplo, o grande e respeitável químico suíço Albert Hoffmann (1906 – 2008), descobridor, por acaso, do LSD, comparava suas “viagens” de “ácido” às lembranças de momentos mágicos de sua infância, e afirmava:

As crianças ainda vivem no Paraíso porque ainda vivem na verdade. Elas ainda percebem o mundo como ele é, ou seja, maravilhoso.[iv]

A ciência, que segue o caminho mais sistemático e chato para a verdade, levou muito mais tempo, mas também está chegando à uma visão do mundo como um lugar maravilhosamente complexo e onde tudo está inter-relacionado.

Essa discussão abre algumas perspectivas para a pedagogia, vejam só:

Será que, em vez de “ensinar as crianças”, o problema não seria mais como conservar o que nós perdemos, ao aprendermos ideias erradas?

Que espécie de pedagogia seria capaz de preservar e de cultivar as qualidades da infância que nós perdemos?

O que podemos aprender com as crianças?

Como levar estas questões em conta, ao conceber o trabalho educativo, especialmente na educação infantil e no ensino fundamental?

Essas e outras perguntas ficam suspensas, é não é de hoje, como diria São Francisco, em nosso irmão, o ar…


  • [i] Albert Jacquard. “Ensaios Sobre a Pobreza”, Lisboa, Publicações Europa-América, 1996.
  • [ii] Ibid., 37.
  • [iii]  Um dos  “At Home in the Universe” (N.Y., Oxford, 1995)  foi escrito por Stuart Kauffman, que estuda os processos de auto-organização em computadores e no mundo. O outro  “At Home in the Universe” (N.Y., AIP Press, 1996) é de John A. Wheeler, reconhecidamente um dos maiores físicos do século XX.
  • [iv]  Albert Hoffmann. “Insight/ Outlook”. Atlanta, Humanics New Age, 1989. p. xvii.

Geografia: a mais importante de todas as matérias da escola? Só se o mundo for uma bola!

Aí está uma idéia que pode parecer estranha, diante do que a maioria de nós está acostumada a pensar: a Geografia é, ou poderia ser ou, melhor ainda, deveria ser a mais importante de todas as disciplinas escolares.

Essa é uma noção atípica porque, infelizmente, o ensino da Geografia na escola ainda é associado a duas idéias principais:

– A Geografia é uma matéria que leva ao extremo o recurso à “decoreba”. Nós fomos educados assim e, apesar de todas as mudanças, ainda podemos dizer que para tirar boas notas em Geografia, em pleno século XXI, o mais importante continua sendo ter uma boa memória.

– A Geografia é uma matéria que não reprova quase nunca, mais fácil e menos decisiva do que Matemática ou Língua Portuguesa. A aula de Geografia é um bom momento para fazer um pouco mais de bagunça até mesmo porque, em geral, professores de Geografia são “mais bonzinhos”…

Nesse artigo, gostaria de tentar mudar um pouco a visão de quem pensa assim e dividir algumas idéias que fazem com que nós, geógrafos, tenhamos grande orgulho e prazer com nossa profissão.

Enfim, a visão da decoreba e da matéria menos séria é triste, porque a Geografia não é nada disso: ela é uma ciência que integra contribuições de todas os campos do saber e que deve ter uma função central na necessária renovação do ensino.

Por quê isso acontece? Em primeiro lugar, porque é a  Geografia que garante um espaço específico para o tratamento das questões sociais e ecológicas dentro das escolas, permitindo que os problemas do mundo sejam discutidos nas salas de aula.

Quando os meios de comunicação mostram incessantemente imagens de terroristas agindo nos mais recônditos cantos do planeta, é possível que a escola ignore isso? E quando o clima do planeta dá sinais de estar sofrendo alterações perturbadoras, talvez por influência da atividade industrial humana, é aceitável deixar de discutir isso? É claro que não, a não ser que a escola desista de ter entre os seus objetivos o de ajudar a entender o mundo.

É por isso que um amigo que é geógrafo sempre diz que “um bom professor de Geografia vai para a sala de aula com um jornal e um globo terrestre”. Claro, pois tudo o que está acontecendo de importante no mundo pode servir como ponto de partida para o trabalho do professor de Geografia.

E no que deve consistir esse trabalho? Basicamente em mobilizar a curiosidade e as idéias que os alunos já têm sobre os temas debatidos e, a partir daí, conduzir atividades em que iremos localizar, mapear, comparar e analisar criticamente os fenômenos discutidos. É exatamente por isso que há muitas décadas já se afirma que, na escola, a Geografia é fundamental para levar alunas e alunos além da visão superficial e sensacionalista das manchetes dos jornais e da TV.

Então, a Geografia é importante porque, mesmo na escola mais tradicional, abre espaço para que os problemas reais do mundo sejam discutidos e aprofundados. Esse processo revela um outro aspecto importante da Geografia: ela pode englobar abordagens de várias outras matérias. Um bom trabalho de Geografia provoca a necessidade de pesquisar e discutir questões históricas e científicas, produzir textos de síntese, levantar dados numéricos e usar a matemática em um sem fim de tipos de análises. Ou seja, em um trabalho sério de Geografia, todas as disciplinas devem dar sua contribuição; todas as matérias podem “estar contidas” na Geografia. A Geografia, vejam só que chique, é multi e interdisciplinar!

Aliás não são apenas os geógrafos que afirmam isso. Um dos grandes pensadores da complexidade, da renovação da ciência e de seus paradigmas é o francês Edgar Morin. Ele reconhece que “o desenvolvimento das ciências da Terra e da Ecologia revitalizam a Geografia, ciência complexa por princípio, uma vez que abrange a física terrestre, a biosfera e as implantações humanas”[i]. Ou seja, uma Geografia que não seja multidisciplinar não merece esse nome.

Com todo esse potencial dói ver que, ainda, a Geografia escolar é muitas vezes associada a coisas como decorar o nome de rios e de capitais…

Talvez eu já tenha conseguido provocar alguma perturbação em sua concepção da Geografia e de seu papel na escola. Para concluir, afirmo uma convicção, que não é apenas minha, de que a Geografia deve ser cada vez mais explorada como a mais importante das disciplinas para atingirmos um duplo objetivo em nossas escolas. Esses objetivos podem parecer contraditórios mas, na verdade, são profundamente complementares:

– Pelo conhecimento do espaço local e pela comparação com outros lugares, ajudar cada um(a) a compreender melhor sua inserção territorial e cultural, o que contribui para a construção de uma identidade pessoal e comunitária mais rica. Conhecer cada vez mais e melhor seu lugar, sua cultura, as pessoas que vivem nos mesmos espaços que nós.

– Pelo tratamento global dos problemas, pela busca de características comuns e pela análise da distribuição e da evolução espacial dos fenômenos, pelo uso constante do globo e de mapas, conhecer cada vez mais e melhor o planeta em que vivemos. É a Geografia que possui a mais nobre das missões, na escola do século XXI: preparar, para além dos patriotismos e regionalismos estreitos, nossas crianças e adolescentes para o respeito às diferenças e para o que nós chamamos de cidadania planetária.

O francês Paul Claval, um grande geógrafo, encerra um de seus livros afirmando que “concebida dessa maneira a Geografia prepara os homens para serem cidadão do mundo. É nisso que acredito sinceramente”[ii]. Eu também…

Afinal de contas, o mundo é mesmo quase uma bola, estamos todos no mesmo barco redondo com sua atmosfera fantástica, o que acontece aqui sempre tem implicações acolá, e não podemos mais nos dar ao luxo de educar nossas crianças como se isso não fosse uma verdade fundamental… Precisamos da Geografia para nos conhecermos, para conhecermos nosso mundo respeitando sua diversidade, sua complexidade e para construirmos a cidadania planetária. Decorem isso…


[i] Edgar Morin. “A cabeça bem-feita”. São Paulo, Editora Cortez, 2003. Página 28. Sublinhado por nós.

[ii] Paul Claval. “La géographie comme genre de vie”. Paris, L’Harmattan, 1996. Página 136.

A triste história de Hans, o cavalo

Wilhem von Osten e seu cavalo Hans, em Berlim, 1904

O psicólogo construtivista Paul Watzlawick, em seu livro How Real is Real? (Random House, Nova Iorque, 1976), nos conta a fascinante história de um cavalo chamado Hans, que vemos aqui ao lado de seu dono, Wilhem von Osten.

Em 1904, Hans deslumbrou a comunidade científica européia depois que. Von Osten, um professor de matemática aposentado, declarou que, graças à educação que recebera, Hans era capaz de responder corretamente a questões sobre aritmética, adivinhar a hora certa, reconhecer pessoas em fotografias, entre inúmeras outras proezas cognitivas.

Como Hans respondia às questões? Simplesmente batendo com os cascos no chão. Para que questões não-matemáticas pudessem ser respondidas, von Osten ensinou o alfabeto a Hans: à letra “a” correspondia um golpe de pata contra o solo, para o “b” Hans batia duas vezes e assim por diante.

Várias pesquisas científicas foram feitas com Hans, todas com o fim de descobrir alguma fraude (muitos achavam que Hans possuía algum código secreto com seu mestre). Mas, para surpresa geral, Hans continuava dando as respostas certas, mesmo quando os testes eram realizados sem a presença de von Osten.

Para a desgraça de von Osten, um assistente do professor, Oskar Pfungst, realizou as experiências que provaram que Hans não sabia ler, contar ou resolver problemas. No relatório que ele publicou junto com outro alemão de nome engraçado, Carl Stumpf, ele contou o que descobriu:

“O cavalo se enganava em suas respostas cada vez que a solução dos problemas apresentados era desconhecida das pessoas presentes. Quando, por exemplo, colocávamos diante do cavalo um número escrito ou os objetos a serem contados de tal forma que somente ele pudesse vê-los, ele fracassava na tentativa de responder corretamente.”

O que guiava Hans, ao bater com o casco no chão, eram as reações das pessoas presentes. Ele era capaz de perceber com extrema competência as reações corporais inconscientes das pessoas que assistiam aos testes. Observando essas reações, ele sabia quando parar de bater com o casco no chão.

Pfungst foi capaz de controlar em si mesmo essas reações inconscientes, de tal forma que conseguia desorientar totalmente o pobre Hans. Ele conta que, queria que a resposta certa fosse dada, bastava pensar nela com intensidade para que Hans pudesse de novo “ler” suas reações não-verbais e orientar-se por elas.

Se Hans pudesse falar, nos diria, mastigando as palavras com um terrível sotaque alemão, como ele fazia para acertar as respostas:

“Orra, é zimples, eu digo parra mim: muito bom, Hans, agorra comece a bater com os patas no chão até que essa xente fique satisfeita.”

O patético desfecho da história de Hans criou um grande trauma nos meios científicos. Na época, havia dezenas de casos não só de cavalos, mas também de cachorros e até de porcos que, aparentemente, respondiam às mais diversas questões através de batidas de patas ou de latidos.

Uma das seqüelas do caso de Hans foi que, nas experiências psicológicas com animais, passou-se a evitar qualquer contato entre ele e os cientistas. A incrível capacidade dos animais para decifrar as mais sutis reações dos outros passou a ser ignorada, o que não significa que eles tenham deixado de prestar atenção às pessoas que os examinam…

Nós, humanos e humanas, também somos extremamente sensíveis às reações dos outros. Todos nós, quando assumimos o papel de “alunos” e de “sujeitos de teste”, passamos a nos preocupar muito com as pessoas que assumem o papel complementar de “professor” ou “examinador”. Isso é normal, pois afinal são essas pessoas que têm a função de nos avaliar. Como Hans, nós tentamos perceber o que se espera de nós.

Essa tentativa de “adivinhar o que o outro quer” explica os resultados aparentemente absurdos obtidos em uma pesquisa realizada na França em 1980, com alunos(as) de 4a série. As crianças receberam, em sala de aula, um problema com o seguinte enunciado: “Em um navio há 26 carneiros e 10 cabras. Qual é a idade do capitão?” A grande maioria das crianças escreveu respostas como a seguinte: “26 + 10 = 36. A idade do capitão é 36 anos.”

As crianças deram respostas assim não porque eram “burras como cavalos”, mas sim porque, naquela situação específica, era isso que acharam que tinham que fazer. Elas pensaram algo que podemos descrever assim: “Não se deve, aqui, questionar a lógica do enunciado – o professor é que tem esse dever. Aqui, deve-se cumprir a obrigação de dar uma resposta.”

A partir desse raciocínio, as crianças francesas aplicaram um esquema já desenvolvido para resolver, na escola, esse tipo de problema. Podemos descrever esse esquema como uma seqüência de ações mais ou menos assim:

“Selecione, no enunciado do problema, os números; adicione-os; escreva na resposta o valor da soma. A professora ficará satisfeita com isso.”

Os alunos e alunas franceses sabiam muito bem que a pergunta não faria sentido “fora da escola”. Mas, dentro da escola, os processos de raciocínio e de bom senso não parecem se aplicar; na escola, faz-se, sem questionar, o que precisar ser feito para que o professor ou a professora fique feliz…

Tanto Hans quanto as crianças francesas estavam simplesmente fazendo o necessário para atingir um certo objetivo: agradar seus “examinadores”. Não existe nada de particularmente grave no seu comportamento, embora essas histórias sejam perturbadoras para quem se preocupa com pedagogia.

Por mais puras que sejam nossas intenções, como pedagogos preocupados apenas em educar, teremos sempre de lidar com o fato de que nossos alunos podem estar mais preocupados em nos agradar do que em realmente pensar sobre aquilo que gostaríamos que pensassem.

Em relação a cada conteúdo, vivemos de certa forma o mesmo drama do mestre zen que dizia a seu discípulo, com o braço erguido contra a noite clara: “Não olhe para meu dedo, mas para a Lua”…

A escola fechada e a escola aberta – o paradoxo de uma velha revolução que ainda não aconteceu na prática…

Nesse artigo vamos falar sobre uma velha briga da Pedagogia, que acontece entre os defensores de uma escola completamente isolada do mundo e os que defendem uma escola aberta para ele.

Vejamos alguns aspectos positivos de cada uma dessas visões:

Para os defensores de uma visão mais ortodoxa ou “fechada”, a escola é uma instituição que se tornou necessária a devido a fatores como a invenção da linguagem escrita, a difusão da democracia e o desenvolvimento de sociedades cada vez mais complexas.

Em um mundo que, a partir do final do século XVIII, foi ficando cada vez mais complicado, não é mais possível que a aprendizagem se faça como nas sociedades “primitivas”, em que as crianças aprendiam as habilidades importantes em contexto: participando com os adultos de atividades como plantar, tecer, caçar, etc. De acordo com a visão “fechada”, precisamos afastar a criança da sociedade, criar um espaço especial e protegido para que ela possa aprender o que é importante, longe do mundo caótico e confuso.

Assim, a separação e o isolamento são importantes porque criam um espaço em que podemos atuar para fazer coisas como dividir as crianças e adolescentes em diferentes faixas etárias, e fazer com que sejam submetidos a um programa didático e curricular específico.

Um dos mais brilhantes defensores de uma escola fechada ao mundo foi o pedagogo francês Alain (1868-1951). Para ele, a separação total entre escola e mundo é o fundamento dessa instituição, e ele resume sua posição em uma fórmula que ficou famosa: “A escola é e deve ser separada da natureza”.[i]

Um pedagogo contemporâneo reafirma a importância da separação entre escola e mundo, que cria um espaço em que existe o direito de errar: “O direito ao erro é precisamente o que justifica a escola em seu isolamento em relação à vida social”.[ii]

Em resumo, graças à escola temos tempo para perder tempo, para pensar e para errar, e essa parece ser uma vantagem inegável quando sabemos que o trabalho infantil ainda é uma realidade em muitos lugares e que a sociedade de consumo volta cada vez mais suas poderosas baterias para a infância e para a adolescência. A escola cria para a juventude um espaço livre das pressões sociais imediatas.

O que alguém pode ter contra essa visão?

Existem duas correntes principais de contestação da visão tradicional da escola isolada do mundo. A primeira, mais radical, contesta a própria necessidade de existência da instituição “escola”; a segunda corrente de críticas defende um uso totalmente diferente do espaço de liberdade criado pela instituição, que continua sendo necessária.

Para os autores mais radicais, entre os quais o mais conhecido é o austríaco Ivan Illich (1926-2002), deveríamos pensar em uma “sociedade sem escolas”. Em um livro polêmico e ainda muito interessante, publicado pela primeira vez em 1971, ele defendeu a ideia de que a escola possui um enorme poder – o monopólio de dizer quem “sabe” ou “não sabe” -, que esse poder deve ser contestado e que o processo de educação deveria passar pela criação de redes de conhecimento e pelo incentivo a todas as formas informais de aprendizagem.

Sua crítica, que faz parte de um pensamento que se opõem a qualquer espécie de grande instituição corporativa, é muito influente até hoje, especialmente nos EUA, onde muitas crianças de classe média estão sendo educadas por suas famílias, sem passar por escolas.

Na verdade as idéias de Illich podem ser interessantes até para aqueles que, como a grande maioria de nós, acreditam na importância fundamental da escola e sabem como é utópico esperar que uma sociedade – especialmente se for pobre e dominada pela mídia consumista como é nosso caso – tenha forças para gerar  em grande escala processos educacionais como aqueles com que sonhava Illich.

Um outro grupo de críticos, sem querer o fim das escolas, fala sobre o isolamento excessivo criado por muros que separam completamente a instituição do mundo em volta. Esses críticos, utopicamente, sonham com uma rede de escolas diferente, e não com uma sociedade sem escolas…

Vejamos algumas idéias importantes desse grupo:

As primeira grande crítica é dirigida à excessiva artificialidade da escola, que não hesita em criar métodos, divisões, escalas de avaliação, etc. Dessa forma, acaba criando um mundo artificial que fabrica suas próprias “hierarquias de excelência” (termo empregado pelo pesquisador suiço Philippe Perrenoud ao analisar o funcionamento da avaliação escolar), sem muita relação com o mundo real, mas que acaba tendo uma influência determinante, muitas vezes decisiva, sobre a construção da imagem tanto dos que conseguem chegar ao topo dessa hierarquia quanto dos que não cumprem bem seu papel de alunos bons e disciplinados.

Outra grande linha de críticas é quanto ao conteúdo escolhido e à maneira como é ensinado. O grande erro da escola mais tradicional está em seus conteúdos, que não interessam à juventude, e em seus métodos de ensino, que são autoritários e repressivos demais.

Aliás, essa não é uma crítica recente e já por volta de 1580, Montaigne, um dos pioneiros das concepções “abertas”, reclamava: ”não cessam de nos gritar aos ouvidos, como se por meio de um funil, o que nos querem ensinar, e o nosso trabalho consiste em repetir”.[iii]

Para muitos críticos, a grande solução para uma escola excessivamente artificial e isolada, distante dos interesses de crianças e adolescentes, seria uma abertura maior para o mundo. Assim, poderíamos selecionar assuntos de interesse muito maior, e poderíamos orientar um trabalho educativo com uma participação muito mais ativa de alunas e alunos. Mas, para isso, o papel das fronteiras, dos muros da escola, precisa ser repensado…

Outra grande crítica é quanto à natureza dos processos de comunicação que acontecem dentro dos muros da escola fechada. Devemos fazer perguntas como: Por que, quase o tempo todo, a proibição de que alunos conversem entre si? Por que só podem falar com o professor e somente com a sua autorização? É assim que se pretende formar pessoas aptas a debater e a participar ativamente de uma democracia?

Esse argumentos são sensatos, e receberam uma de sua expressões mais claras nas idéias do filósofo e pedagogo norte americano John Dewey (1859-1952). Para ele, as escolas deveriam funcionar como pequenas comunidades, valorizando a comunicação, a busca de objetivos comuns e a criação de processos em que todos aprendessem com todos.

Podemos perceber que uma das grande ideias do movimento que ficou conhecido como Escola Nova é valorizar muito mais as interações sociais do que o faz a escola tradicional: interações da escola com o mundo e interações entre todos os membros da comunidade escolar.

Dizer que esse debate não é importante para a pedagogia do século XXI, ou que está superado, é correr o risco de cair no ridículo. Ridículo, aliás, a que se expôs o movimento brasileiro conhecido como Pedagogia Histórico Crítica que, apesar de louváveis intenções de democratização do ensino, representou um retrocesso, ao reforçar posições e práticas didáticas da escola fechada.

Como se vê, a briga entre as concepções abertas e fechadas da escola é muito interessante, e continua nos dias de hoje.

Paradoxalmente os vencedores dessa briga, na prática, são os perdedores da discussão no plano teórico, e vice-versa. Enquanto que quase todos os grandes nomes da história da teoria pedagógica defendem posições abertas, na prática a imensa maioria das escolas, de todos os níveis e lugares, sempre funcionou  e ainda funciona a partir de um isolamento quase total do mundo.

Por isso, por mais que se possam criticar as posições “abertas” (como o fez de forma imprecisa e injusta a corrente brasileira conhecida como pedagogia histórico-crítica[iv]) é preciso reconhecer que, na prática, essas posições jamais  chegaram a influenciar de maneira significativa o funcionamento das redes escolares em qualquer lugar do planeta, nem mesmo na América do Norte ou na Europa. Na maioria dos casos, as iniciativas “abertas” se concentraram em escolas pioneiras, e não se expandiram a não ser de forma completamente desvirtuada.

Como diz de forma conclusiva Philippe Perrenoud, “o paradoxo é que denunciam-se os estragos de uma revolução pedagógica que jamais aconteceu ao nível dos fatos”.[v]

Na prática, a Escola Nova praticamente não foi descoberta, ainda, em pleno século XXI…

[i] Traduzido de: Alain. Propos sur l’éducation, Paris,  PUF, 3a ed., 1995. Página 40.

[ii] Traduzido de: Bernard Rey. Les Compétences transversales en question. Paris, ESF, 2ª edição, 1998. Página 137. Já existe uma versão brasileira desse livro, publicada pela Editora Artes Médicas.

[iii] Montaigne, “Ensaios”’. RJ, Ediouro, 1977. Página 144.

[iv] De forma “imprecisa” porque reduz a riqueza e diversidade de idéias e de experiências pedagógicas de toda uma corrente a um suposto “espontaneísmo”; “injusta” porque transforma em simples “interesses de classe burgueses” o trabalho pioneiro de pessoas importantes e, na maioria dos casos, profundamente engajadas com a melhoria das condições sociais e com a democracia.

[v] Traduzido de: Philippe Perrenoud. Métier d’élève et sens du travail scolaire. Paris, ESF, 2a ed., 1995. Página 17.

OS QUADRINHOS E A ESCOLA QUADRADA – A escola na visão das tirinhas de HQ

Em 2004, a revista Educação me pediu um artigo falando sobre a escola e as “tirinhas” de HQ. O resultado foi esse, com pouquíssimo texto, dividido em 8 itens, 23 tirinhas e uma visão extremamente crítica da escola “tradicional” – modelo que, para nosso espanto, predomina até hoje – por grandes artistas. 

Quando artistas fazem tirinhas sobre a escola, é importante ter em mente que quase  sempre estão falando da escola tradicional, aquela que a grande maioria deles – e de nós – conheceu. É dessa escola que tratam os quadrinhos selecionados aqui e é dessa escola que, como a maioria dos artistas, os cartunistas parecem não gostar nada, nadinha…

Os cartunistas nos falam através da voz de seus personagens e, misturadas com sua criatividade e com a personalidade única de cada personagem, certamente existem lembranças de suas experiências como alunos.

A seqüência das tirinhas fala por si, e o texto serve apenas como acompanhamento para uma amostra do grande talento de pessoas que se tornaram grandes artistas em seu campo. Restaria discutir – mas isso não vai ser feito aqui – se isso aconteceu apesar  da escola, contra ela ou, até mesmo, apesar de tudo, com a ajuda dela…

Vejamos o que as tirinhas nos dizem em sua linguagem brilhante e concisa:

1 – NÃO GOSTAMOS DA ESCOLA, ELA  NÃO É UM LUGAR LEGAL

 Artistas são em geral, desde a infância, pessoas com uma sensibilidade muito grande. Mais ainda que a média das crianças, eles parecem sofrer com a falta de espaço, dentro da escola, para desenvolver seus talentos pessoais  e com  o caráter massificador da educação tradicional. Seu desejo de expressão pessoal e de desenvolvimento da individualidade choca-se com a impessoalidade das regras e dos currículos. Muitos personagens detestam a escola e podemos ver alguns quadrinhos como um verdadeiro “acerto de contas” com uma escolaridade que foi vivida e aceita em silêncio.


2 – A ESCOLA É MUITO ARTIFICIAL E ISOLADA DO MUNDO

Especialmente entre os personagens da Mafalda, existe uma  percepção clara da grande distância, do verdadeiro “corte”, que existe entre escola e mundo. Essa separação cria um novo espaço, no qual surge um novo tipo de regras e um ensino que parece às crianças extremamente distante de seus interesses. O “jogo” da escola, o tipo de diálogo que ela propõe, chega a ser explicitamente rejeitado. Em suma, a escola não fala de coisas interessantes, nos obriga a tarefas sem atrativo e, mesmo quando nos saímos bem nela, não há motivo para festejar.

3 – A ESCOLA É UM LUGAR ONDE A GENTE “SE ENCHE” E QUE, POR ISSO, ESTIMULA O DEVANEIO

A escola nos isola de um mundo que normalmente é muito mais atraente. Ela nos obriga a ficar sentados, imóveis e quietos, seguindo discursos que na maioria dos casos não são interessantes. Isso estimula o devaneio e a fuga pela imaginação, onde aparecem temas e personagens que nos fascinam. Os artistas parecem recordar-se dessas situações mas, puxando pela memória, quem de nós não se lembra de ter passado por isso?

4 – APESAR DE TUDO, A ESCOLA É IMPORTANTE EM NOSSAS VIDAS, 

Como as crianças, os personagens das tirinhas ouvem os adultos falarem sobre como o que aprendem na escola “vai ser importante mais tarde”. Elas assimilam essa mensagem, mas buscam reagir a ela. Isso é especialmente verdadeiro no caso dos alunos mais rebeldes e/ou  “fracos”.

5 –  E TEM UM PAPEL IMPORTANTE NA CONSTRUÇÃO DE NOSSA AUTO IMAGEM

 A importância da escola em nossas vidas e para as outras pessoas  faz com que ela tenha influência sobre a formação de nosso auto-conceito. Infelizmente, essa influência se manifesta com particular intensidade, e de forma negativa, no caso das crianças que não se saem bem na escola, os alunos considerados mais fracos.

6 –  ÀS VEZES  DESEJARÍAMOS QUE A ESCOLA NÃO EXISTISSE,

Algumas vezes personagens expressam de forma clara um desejo que, em algum momento de nossa infância, muitos de nós sentimos:  preferiríamos que a escola fosse destruída, que deixasse de existir.  Sem a escola, acabariam-se coisas como fazer lições, submeter-se a uma disciplina excessiva e levantar cedo demais…

7 – OU ENTÃO, QUE FOSSE DIFERENTE

Existem situações em que os personagens parecem ir além de uma visão puramente crítica da escola e, dentro de um espírito rebelde e bem humorado, dão indicações de caminhos para uma escola diferente. Em geral, essas indicações sugerem mais diálogo e, principalmente, uma aproximação maior com a cultura infanto juvenil e com temas que a interessam.

8 –QUEREMOS UMA ESCOLA INTERESSANTE, QUE DEIXE BOAS LEMBRANÇAS

Concluindo, se não cabe aos cartunistas definir como deve ser uma escola menos quadrada e enquadradora, eles sempre podem nos inspirar, nos fazer rir e pensar. Aproximando-nos mais da sua e da nossa própria infância, eles podem nos animar a nunca desistir da busca de uma escola cada vez mais interessante, próxima das crianças, diferente daquela de onde muito de nós – inclusive o autor que aqui se despede, de forma autobiográfica (em uma fotografia de 1966) – tínhamos mesmo era vontade de fugir…

O FIM!